Wednesday, June 28, 2006

4º Assombro (ou onde foi que deus me fugiu, por eu não o ter procurado provavelmente no único lugar onde esteve sempre)

Queria dizer um tempo. Um lugar. De onde deus me tenha fugido. Mas não sei. De verdade que não sei
(onde perdemos as coisas que carregamos dentro?)
se foi aos doze anos, um dia depois da missa de domingo, farta de tanta gente estranha que se benzia por tudo e por nada e que, depois, maldizia por nada e por tudo. Não sei se foi aos treze. Quando, vá-se lá saber porquê, comecei a misturar corin tellado's com marx e nietzsche e tudo
(basicamente)
o que apanhava que pudesse ser lido. Ou se terá sido aos dezasseis, uma noite em que encontei o meu pai a ler a bíblia e lha arranquei das mãos. E li umas frases
(talvez não tenha percebido bem)
em que deus dizia
(ou se escrevia que deus teria dito)
que não poderíamos jamais comer da árvore do conhecimento
(que parece que era uma macieira)
porque ficaríamos
(ou o adão e a eva, que, ao que também parece, personificavam todos nós, mas não sei)
a saber tanto como deus, sem ser suposto. E eu não gostei. De um deus que
(aparentemente)
nos condenava à ignorância eterna ou assim. E devolvi a bíblia ao meu pai. E continuei a perder deus para toda eternidade
(achando bem que a árvore não fosse um castanheiro, porque gosto tanto de castanheiros, que estava capaz de viver dentro de um)
e deixei de ler corin tellado. E li mais marx e muitas outras coisas que continuamente me negavam a existência de deus e de uma parte importante dessas coisas metafísicas e que parece se entendem bem com a alma
(onde se perde a alma?).
Não sei onde foi que perdi toda a ideia de deus. E a fé. Se continuei sempre a invejar aqueles que são capazes de gestos avassaladores, por ela. Aqueles que acreditam tanto
(e não, como eu, apenas à noite, quando estou sozinha e o silêncio e o medo invadem aquilo que seria a minha alma, se eu fosse capaz de reconhecer que tenho uma)
em alguma ideia que se sentem sempre acompanhados. Não sei, portanto, para onde me escorreram deus e a fé que tinha nele. Não sei como vivi até aqui sem querer saber se deus existe ou não existe. E não sei como
(ou sei, mas acreditem que não é interessante)
de repente comecei a achar graça às igrejas. Vazias. Aos bancos alinhados. Ao cheiro das velas. Aos vitrais. Aos tectos pintados com cenas do céu e do inferno
(sempre gostei dos orgãos de tubos, embora não tanto como gosto de castanheiros)
aos bancos do coro, nos velhos templos, com carantonhas horriveis. Não sei como de repente comecei a pensar se deus existe ou não existe e a considerar que é capaz
(que exista)
mesmo que eu não saiba.
(É verdade. Não se pode saber tudo).
Mesmo que eu tenha passado tantos anos a invejar aqueles que o encontram em toda a parte e são felizes por isso
(ou andam mais acompanhados).
É capaz que exista deus. Não o tenho encontrado nas igrejas, é certo
(mas talvez não procure muito bem. O cheiro das velas, os vitrais, os bancos alinhados, os orgãos de tubos distraem-me muito)
mas nada me diz que ele não esteja lá. Ou noutro sítio qualquer. Mas creio que provavelmente está no único lugar onde o tenho procurado pouco
(excepto, por vezes, à noitinha, no meio do silêncio e do medo)
e, afinal, nunca me tenha fugido
(para onde iria um deus em fuga?)
e esteja exactamente dentro de mim. Ou dos castanheiros
(nunca consegui gostar muito de macieiras)
ou apenas de tudo o que existe. Mesmo que eu não saiba
(mas não posso. Nem quero. Saber tudo).
Queria dizer um tempo. Um lugar. Onde tenha encontrado deus. Mas não sei. De verdade que não sei
(onde encontramos as coisas que carregamos dentro?).

Wednesday, June 21, 2006

4º Destroço (ou onde é evidente que me zanguei contigo. A ponto de ficar com os sapatos desfeitos)

Apeteceu-me sempre mandá-los à merda
(vão à merda!)
a cada vez que me perguntam
(mesmo nos sítios mais insuspeitos, mesmo nos mais improváveis instantes, mesmo as pessoas mais inesperadas)
se não me zanguei contigo. Não sem que antes me aconselhem demoradas conversas de mim para mim, preferencialmente ao espelho
(que isto é tudo muito new age ou o raio que os parta)
onde seria suposto insultar-me, bater-me, descontrolar-me e talvez até cortar os pulsos, para um final em grande
(estilo).
Perguntam-me porque não grito, eu, comigo mesma, ao espelho. Porque, ao que parece, deveria ter-me zangado contigo até ficar
(em sangue)
aliviada. E eu ponho esta cara de sonsa que aprendi a fazer
(ao espelho),
faço um sorriso absolutamente amarelo, ensaio a água nos olhos e não lhes respondo
(nada)
que vão à merda. Que me deixem em paz, com o que eu quiser fazer ou dizer ou outra coisa assim, qualquer
(o que eu quiser).
E dou comigo a olhar para os espelhos. Nos sítios mais inesperados. Com as pessoas mais improváveis. Nos mais insuspeitos instantes. A olhar para os espelhos à procura de mim
(para me bater).
E dou por mim à procura dos espelhos. E o que vejo é a minha figura
(tristíssima figura, já que perguntam)
um bocado assustada diante de mim. Diante da mão que se levanta
(uma mão igualzinha à minha)
para me esbofetear, ao mesmo tempo que ouço uma voz
(uma voz igualzinha à minha)
que me pergunta tu não te zangas com ele porquê? E páro
(rigorosamente)
a tempo de não entristecer mais ainda a minha já triste figura. E fico para ali, um bocado, a olhar
(aquela pessoa igualzinha a mim)
e a ter pena dela, como quem devia responder
(nada, rigorosamente)
ó tu, ó coisa, vai à merda! E não responde, coitada. E não respondo, coitada. E passo os espelhos logo a seguir. E cedo à tentação de me entristecer comigo, neles. E penso que com o tempo, tudo se irá embora. Os espelhos. As perguntas. Os conselhos. Mesmo aquela figura
(triste)
que sou eu. E não respondo. Porque é evidente que me zanguei contigo. A cada vez que me perguntaste se não me zangava
(contigo)
poupando-me, porque era de dentro de mim que perguntavas, a cena dos espelhos, das bofetadas, dos pulsos cortados, do sangue. A cada vez que te respondi
(sim, a ti, ao menos a ti)
vai à merda! Nas poucas vezes em que, ao princípio, te procurei no sítio onde puseram o que já não és tu
(mas é tudo o que resta)
e não te encontrei. Só a uma pedra grande, branca de fazer doer os olhos, com muitos bonequinhos com asinhas por cima e muitas cruzes e flores em jarras
(vão à merda!)
e sem árvore nenhuma em cuja sombra eu me sentasse para te ler um bocadinho
(ao que não és tu, mas o que resta),
como antes. Para me ouvir um bocadinho a fingir que eras tu que me ouvias. Para te ouvir um bocadinho a fingir que eras tu que me falavas. E só a pedra grande
(branca de fazer doer não sei o quê cá dentro)
carregada de bonequinhos com asinhas e de cruzes e de jarras de flores a que alguém mudava rigorosamente a água. E eu a encher-me de de uma coisa qualquer
(os ossos, doíam-me os ossos),
a cada vez que tentava não olhar para a tua fotografia
(vão à merda!),
para o teu sorriso tão grande, tão branco
(de fazer doer os olhos).
E os ossos a doer-me mais. E eu à procura de um espelho onde me pudesse bater. Insultar. Cortar os pulsos. Desfazer-me em sangue para te dar sombra. E eu a não ver nada, quase a cegar
(a pedra tão grande, tão branca),
quase a ensurdecer
(os bonequinhos, as asinhas dos bonequinhos, as cruzes, as flores nas jarras a que alguém mudava a água),
quase a perder todos os sentidos
(o teu sorriso, tão bonito o teu sorriso, foda-se!).
E não sei como foi. Nessas vezes. Que me encontrei
(triste figura)
quando a ti te procurava, aos pontapés
(é evidente que me zanguei contigo),
rigorosamente aos pontapés
(como que a esbofetar-me ao espelho, tão new age, o raio que os parta)
à violenta e branca pedra onde puseram o que de ti não sobrou
(tudo o que resta)
cega, surda, sem sentidos
(vai à merda, vai à merda, estás a ouvir?)
e com os sapatos
(rigorosamente)
desfeitos.

Tuesday, June 20, 2006

4º Regresso (ou de como o amor é uma coisa rara. Rara, como em esquisito)

Houve uma altura, Luísa, em que me encontrei

(de tão perdido que estava)

capaz de morrer por ti. E teria morrido, Luísa

(se)

não fosse a certeza que, em morrendo, deixaria de te ver. Não suportava a ideia de deixar de olhar para ti, Luísa. Tenho a agradecer-te

(imagina)

a vontade que tinha de morrer

(e não morrer).

Tudo por ti.
Lembro-me bem de quando te conheci. Era inverno. Estava frio. Tinhas umas calças cinzento escuro e uma camisola de gola alta castanho chocolate e um sobretudo grosso, também cinzento, quase da cor das calças. E tinhas esses olhos tão verdes, Luísa. E essa boca

(e a camisola, foi quando tiraste o casaco que vi, era de manga curta. Da cor do chocolate)

que me apeteceu beijar, mal te vi. Morrer por essa boca. E não morrer nunca, para beijar a tua boca

(para sempre).

Quando te vi, Luísa. As coisas ficaram suspensas e só os teus olhos viviam. Não sei se te amei logo. O amor é uma coisa rara. Tão rara, como em esquisito. Por isso, se calhar foi logo ali que comecei a amar-te e a ter vontade de morrer

(e não morrer nunca)

por ti.
E os teus olhos diziam-me que também estavas capaz de entrar vertiginosamente no abismo

(raro, como em esquisito)

que, mal te vi, se abriu ali mesmo, debaixo dos nossos pés

(para que caíssemos).

E a tua boca

(essa boca)

dizia o contrário. Ou nada disto. Acho que nada disto. Porque nada disto era possível ser dito, assim, mal nos conhecemos. E, portanto, a tua boca

(essa boca)

dizia outra coisa qualquer, mais a propósito

(menos).

Luísa, o amor. O amor Luísa. Essa rara e estranha coisa que sentimos. Ainda te lembrarás, Luísa? Dessa coisa esquisita que fez com que me olhasses assim

(como se fosse a primeira vez que vias).

Desse estranho olhar que nos lançámos. Um olhar como nunca mais vi em ninguém. Porque não nos olhávamos. Estávamos dentro dos olhos um do outro. Exactamente dentro. De modo que os teus olhos verdes eram os meus olhos castanhos e estavas em mim. E os meus olhos castanhos não eram os meus olhos castanhos

(mas os teus olhos verdes)

e eu estava em ti. Todas as coisas estavam ali. O universo inteiro nos nossos olhos assim trocados, Luísa.
E a tua boca

(essa tua boca que foi tão minha, depois e sempre, tão minha como se tivesse nascido comigo)

dizia coisas mais a propósito. Coisas que sinceramente não recordo. E o tom da tua voz dizia coisas de que

(sim, dessas sim)

me recordo perfeitamente. Como se tivesse sido agora há pouco que saímos os dois. E eu te comprei um ramo de malmequeres

(amarelos. Não podia ser, para ti, mais nenhuma cor)

e abalámos, de olhos trocados, para a praia. Era Inverno. Estava frio. Luísa, ainda te lembras? De termos ficado na praia a dizer coisas

(mais a propósito)

e tu a arrancares, e a desejar que eu não visse, as pétalas aos malmequeres?

E depois, Luísa, quando a noite chegou, como chega sempre no Inverno, cedo demais e eu deixei de ver os teus olhos e tive que beijar a tua boca e tu

(mais a propósito)

me recusaste porque

(porque me recusaste, Luísa?)

tinhas frio e tinhas medo e tinhas culpa e tinhas-me a mim

(se me quisesses)

ali perdido a querer morrer

(e a não querer morrer)

por ti. A querer morrer por essa boca. Tão cheia. Tão cheia que parecia ter sido feita apenas para ser comida. Comida não

(lambida, chupada com força, devorada),

beijada como se fosse a primeira vez que vias.

E a porcaria da praia, a porcaria do mar. E a porcaria das estrelas. Tudo a gritar que morresse. Mas só depois de beijar a tua boca

(essa boca).

E tu a recusares-me, Luísa. Porque tinhas frio, porque tinhas medo, porque tinhas culpa e tinhas-me a mim se me quisesses.

E eu então disse-te

(menos a propósito)

ainda por cima, a porcaria da praia, a porcaria do mar, a porcaria das estrelas.

E comecei a chorar. De raiva, de desejo, de dor, de mágoa, de amor

(uma coisa rara).

E então tu puseste de lado os malmequeres, meio desfolhados.

(Mal.me.quer)

(bem.me.quer)

e agarraste-me na cara com as tuas duas mãos

(as tuas duas mãos tão raras)

e beijaste-me. Na boca

(na minha pobre boca de lábios finos),

como se fosse a primeira vez que vias. E eu de tão perdido que estava

(encontrei-me)

a querer morrer. E a não querer morrer. De amor. Por ti, Luísa. Pelo menos a querer e a não querer morrer, até que a tua boca deixasse de ter nascido comigo. A desejar que a tua boca fosse assim a minha

(para sempre).

E foi. E hoje sento-me na mesma praia Luísa. E penso em como o amor é uma coisa rara. Em como o amor nos faz querer morrer

(e não morrer)

só por um beijo. Hoje sento-me na mesma praia e não maldigo o mar nem as estrelas. Nem os convoco. Hoje sento-me aqui. E penso se ainda te lembras, Luísa, ou se já te esqueceste do primeiro dia em que nos vimos

(como se fosse a primeira vez que víamos)

e nos quisemos bem. Sento-me aqui para me lembrar de ti. Para perceber onde foi que deixaste de trocar os olhos comigo. Onde começaste a impedir que os meus te vissem. Onde foi que

(bem.me.quer)

(mal.me.quer)

deixaste de me querer. E aos meus lábios finos. Onde foi, Luísa? Quando eu, aqui sentado, continuo à procura de mim no fundo dos teus olhos

(que já não vejo),

continuo à procura da tua boca para matar a fome. Continuo a encontrar-me

(por vezes)

tão perdido e capaz de morrer

(e não morrer)

por ti. Aqui sentado, com a praia, o mar e as estrelas. E tenho frio e tenho medo e tenho culpa e não te tenho. E tenho essa coisa, rara, o amor

(rara, como em esquisito).

Monday, June 19, 2006

3º Assombro (ou onde se descobrem cadeiras vazias, tão vazias. E uma mulher se encontra. Cheia. A rebentar. De espanto)

O que me fez começar a chorar no cinema não foi os filmes terem, de repente, ficado mais comoventes ou tristes ou outra coisa qualquer
(os filmes permanecem aquilo que sempre foram. Um vício. Consumidor. De nós. E da nossa vontade. Uma urgente necessidade. Que nunca me fez chorar, até ter começado a chorar no cinema. Mas o que me fez começar a chorar no cinema não foram os filmes)
mas as cadeiras vazias que começaram a aparecer, de repente, ao meu lado. Mesmo ao meu lado. Onde antes se sentava gente
(ou mais exactamente, tu).
Nunca chorei no cinema.
(Eu, que choro em qualquer lado).
Os livros sempre me fizeram chorar. Alguns documentários sobre as pessoas. Sobre a miséria da vida das pessoas. Sobre as miseráveis pessoas e a vida. Sobre a miséria. A vida. As pessoas. Choro se encontro as pessoas, a vida com a miséria. As pessoas também me comoveram sempre ao ponto de me choverem lágrimas. Mas os filmes
(estranha coisa)
nunca me fizeram chorar. Até começar a chorar no cinema. Não pelos filmes terem ficado
(de repente)
mais tristes ou comoventes
(ou até piores)
mas pelas cadeiras vazias que se começaram a multiplicar ao meu lado. Ou que me parece que começaram a multiplicar-se
(ao meu lado)
onde antes te multiplicavas tu.
Foi com assombro que me encontrei cheia de lágrimas. Logo da primeira vez que fui ao cinema após te teres levantado da cadeira e saído vida fora
(ou morte adentro)
sem aviso. Sem te despedires, como de costume, quando te levantavas e saías realmente
(vida fora).
Esperávamos o filme há muito. Aquele. E logo a primeira vez que fui ao cinema. Foi esse que decidi ver. Foi com espanto que, de repente, dei por mim, lavada em lágrimas. Não foi um choro convulsivo. Foi um choro esquisito
(que nem parecia meu, porque sou torrencial)
um choro tão tranquilo. Como se as lágrimas estivessem desde sempre a escorrer-me pela cara. E isso fosse natural. Como se as lagrímas não chovessem, mas nascessem mansamente. Ou como se as lágrimas estivessem cansadas e quisessem deslizar, como a sossegar-se.
Pensei, primeiro, que era do filme. Toda a gente se suicidava no filme. Ou queria suicidar-se
(todas as personagens procuravam qualquer coisa, eram sombrias, estavam doentes, eram difíceis).
Todas as personagens travavam guerras dentro.
E, primeiro, pensei que era disso. Dessas batalhas que eram um bocadinho minhas, ou da morte que procuravam ou das palavras que diziam ou pensavam dizer, mesmo antes de morrer. Mas depois vi que não era isso
(o que me fez começar a chorar no cinema)
não era o filme ser triste, ou comovente ou demasiado real para ser ficção. Ou demasiado belo para ser verdade. Ou outra coisa qualquer.

O que me fez começar a chorar no cinema foi a cadeira vazia que apareceu, espantosamente, ao meu lado. A mesma cadeira onde antes se sentava gente. A cadeira vazia para onde eu de vez em quando olhava
(à espera da tua mão. Ou só do teu olhar. Ou de certeza do teu sorriso. Ou da certeza. Pronto).
O que me fez começar a chorar no cinema, como se me nascessem rios nos olhos e, ao mesmo tempo, um vulcão estivesse prestes a rebentar cá dentro, não foram os filmes terem ficado mais comoventes. Ou ter eu passado a ver filmes mais tristes. Foram as cadeiras vazias que se multiplicaram de repente
(de repente, mesmo onde antes eu gostava delas)
e se multiplicou a evidência que te tinhas levantado para sempre
(sem me dizeres onde ías).
Agora tanto faz o filme. Dramas. Terrores. Comédias. Horrores. Amores. Desamores. Animações. Desenhos. Autores. Actores. Argumentos. Cenários. Fotografia. Imagens. Sento-me e fico cheia. A rebentar daquelas lágrimas que correm depois tranquilamente
(como se estivessem cansadas e quisessem deslizar, a sossegar-se)
por mim abaixo. Por mim dentro. Como se quisessem evitar a erupção que se me anuncia, no peito
(acho que é no peito. O peito é um sítio tão susceptível como provável para que vulcões nasçam, irrompam e morram).
Assim que me sento e dou conta das cadeiras vazias. Ao meu lado. Mesmo ali onde antes se sentava gente
(ou mais exactamente, tu)
espanto-me. E fico ali sozinha. Com o filme. E a porcaria da água a correr-me cara abaixo. A inchar-me os olhos. A alimentar o vulcão cá dentro, que há-de rebentar
(um dia)
e cobrir tudo de lama incandescente. Até me queimar a pele toda. Até me incendiar as entranhas. Até o fogo me subir aos olhos
(e apagar a água).

Tuesday, June 13, 2006

3º Regresso (ou de como tudo desapareceu. Aqui dentro. Por causa de uma pergunta que veio não se sabe de onde)

Parece que foi naquele dia. Que tudo começou a morrer. Aqui dentro. As conversas percorrem, por vezes, caminhos estreitos. Estradas sem saída. Ou então. Carreiros a pique. Ruas de macadame. Caminhos com muito pó

(nas entrelinhas e nas margens).

E de repente deixa de haver estrada para andar.

Foi naquele dia. Parece. Quando a conversa começou a entrar num beco de onde não regressaria. Não se sabe de onde me veio a pergunta. Não se sabe de onde lhe surgiu, a ele, a resposta. Mas foi no estreito caminho da resposta que as coisas iniciaram o seu desaparecimento. Aqui dentro

(as palavras que se dizem, as que se vão dizer, as que nunca se dirão. Os gestos que se fazem, os que farão e os que jamais serão feitos. Tudo se mistura de formas inesperadas).

A pergunta, que veio não se sabe de onde, chegou assim, inesperada e misturada com outras que ainda se desconheciam

(as outras mulheres com quem andaste eram assim como eu?)

A resposta que anunciou o fim da estrada e do caminhar, não veio logo a seguir. Fez-se esperar um bocadinho. Como se faz esperar o desaparecimento, antes de o ser

(assim como tu, como? Queres saber se eram mais ou menos bonitas?)

Não. Não era isso. A beleza é irrelevante para o amor. Ou para aquilo que, por vezes, parece mesmo o amor. Mas pode ser só o encontro de duas solidões desamparadas. Ou encontro de quem procura. Ou a procura de quem encontra. Só.
Portanto, não. Não era isso

(não. Não é isso. Se eram assim... se gostavam assim das mesmas coisas?)

Ele pousou a mão no queixo. Fazendo uma pausa, antes da evidência

(nunca tive ninguém como tu. Adoro-te, sabias?)

Eu julgava saber. E levei o polegar à boca, mordendo a ponta devagarinho. Ensaiei um trejeito de pessoa pequenina. Mas deve ter parecido um esgar, dada a minha falta de jeito para as expressões interessantes

(sim, eu também te adoro, mas não é isso. Porque é que gostas de mim? O que é que eu tenho que elas não tivessem?)

Desta vez não passou a mão pelo queixo. Deitou os ombros para trás e abanou a cabeça. Tiques de quando se põe nervoso. Ainda os deve ter, apesar de tanto tempo ter passado sobre o amor, ou sobre aquilo que se parecia com o amor

(Mas ao que vens tu agora? Porque é que gosto de ti?... ora, porque é que gosto de ti?! Porque...)

Não era isso. Também não era isso que a pergunta (vinda de onde não se sabe) procurava

(Porque calhou. Sabemos que é porque calhou encontrarmo-nos. É sempre assim. Mas elas, as outras com quem andaste antes de mim, gostavam das mesmas coisas que eu? Destas de que tu também gostas?)

Pareceu-me ficar um pouco impaciente. Os homens ficam impacientes diante destas perguntas das mulheres. Especialmente destas. Das que anunciam o fim de uma estrada qualquer. Que foi percorrida até ali. E em que, dali em diante, não se pode mais caminhar.

(Que interessa do que é que elas gostavam ou não gostavam, agora? Já não as amo. Já não me amam. Agora amo-te. E...)

E depois? Não disse. Pensei. Agora amas-me e então? Porque não suportas que te faça estas perguntas que vêm não se sabe de onde. Nem para quê.

(está bem, mas alguma vez andaste com uma pessoa que não tivesse os mesmo interesses, sei lá... culturais...ou assim... que tu? Quer dizer, uma pessoa muito diferente de ti?)

Olhou-me como se eu estivesse perturbada. Talvez estivesse. Mas não me pareceu. A mim. Pelo menos a mim não me pareci perturbada

(claro que sim. Com certeza que já andei com pessoas muito diferentes de mim. Pessoas que não tinham nada a ver comigo nesse aspecto)

Foi exactamente aqui que a estrada se encheu de um pó muito fino. Que me impediu de ver o que se seguia. Ou seja. O caminho a estreitar-se. A saída a encolher. Parece-me agora que foi exactamente aqui que tudo começou a desaparecer.

(E como é isso possível? Gostares de alguém que não tem os mesmos interesses e as mesmas preocupações que tu ou que eu, neste caso? Que te atraiu nessa gente?)

Não sei por que razão. Tive a certeza que todas as coisas se diluiram. Se desfizeram. Se desconstruíram. À minha frente apenas um estreito beco. Um muro ao fundo

(gostei delas por outras razões.)

(Quais?)

(Outras, sei lá... mas porque é que estás com estas coisas agora?)

(Diz-me... que outras razões?)

(Não sei... eram bonitas...)

(E eu não sou, é isso?)

(És, claro que és. Eu acho que és linda, bolas!)

(Não sou nada, mas pronto. E mais?)

(Por favor... mais?)

(Sim, sei lá... gostavam de ler? De cinema? Eram de esquerda?...)

(Sei lá se gostavam de ler... e de cinema? Sei lá, já não me lembro... e se eram de esquerda? Que tem isso a ver com...?)

(Como é que não te lembras? O que é que elas liam?)

(Não sei, como é que queres que me lembre?)

(A última, antes de mim, ao menos... nem dessa te lembras?)

(Ah essa... essa não gostava do que tu gostas, ou eu... nunca íamos ao cinema, nem a concertos, nem...)

(e o que é que ela lia?)

(Acho que nunca a vi ler um livro)

(não? Como é possível que tu, precisamente tu, tenhas andado tantos meses com uma tipa que não gostava de ler?...)

(Mas ela gostava de ler.)

(Gostava? Mas se ainda agora disseste...)

(lia imenso, até)

(o quê?)

(a Hola.)

(a Hola?! Como é que pudeste andar com uma gaja que lia a Hola? Porra!)

Parece que foi naquele instante. Que tudo desapareceu. Aqui dentro. Os caminhos. A lógica. A saída. Fui-me embora. Nem olhei para ele. Deixei-o ficar. Ainda falámos depois, outro dia qualquer, contra o muro ao fundo do beco. Mas

raios me partam se eu

(se justamente eu)

havia de querer um homem que foi capaz de andar, numa estrada qualquer, com alguém que lia a Hola!

Friday, June 09, 2006

3º Destroço (ou onde ainda se fala da morte e da expectativa da luz)

Os mortos nada sabem, porque já nada podem saber. Da morte não se regressa.
Mesmo se, às vezes, parece que os nossos mortos (nos) sabem

(certamente à força de tanto querermos que saibam).

Mesmo se, às vezes, parece que os nossos mortos regressam

(certamente à força de tanto querermos que regressem).

Não há regresso nem conhecimento para os mortos

(mesmo se, às vezes, parece que ainda há quem nos (re)conheça, estando morto).

Morreste(me). E já não podes saber nada de quem sou

(se nem eu sei).

Já não podes saber que é a ti que procuro quando só outros encontro. Outros que não estão mortos

(mas, na verdade, tanto me fazia se estivessem).

Já não podes voltar(te) quando te chamo

(porque preciso de ti)

às vezes com o desespero de precisar só da tua mão percorrendo o meu cabelo. Outras vezes com o brutal desejo dos teus braços. E, raramente, com a certeza de que me ampararias as lágrimas.
Disfarço. Que a morte assusta os vivos. Os nossos mortos assustam-nos os vivos. E, assim sendo, para que ninguém se assuste, disfarço

(está este calor dissolvente e os mosquitos agrupam-se no vidro, na expectativa da luz).

Morreste(me) e não penses

(como se pudesses pensar ainda)

que te esqueço quando procuro e, por vezes encontro, outros braços, outros corpos, outros que (me) encontram quando, por vezes, procuram. Não penses

(como se pudesses pensar ainda)

que não é a ti

(e só a ti)

que sigo querendo

(na expectativa da luz).

Disfarço

(um mosquito entra dentro do quarto demasiado quente, apesar da janela fechada. Há sempre pequenas brechas para quem procura. A luz)

e mesmo assim. Nos percursos diários. As pessoas revelam-me o que, embora vivas, desconhecem. Estás com bom ar. Estás mais bonita. Que tens andado a fazer?

(A cabra! Com melhor ar! Mais bonita! Do que o antes da tua morte!).

Disfarço. Nos percursos diários. Revelam-me o que (ainda) não se sabe.
O que ainda se desconhece é que morrendo, me mataste

(e, já se sabe, aos olhos dos vivos, os mortos serão sempre mais bonitos do que alguma vez foram em vida).

Os vivos desconhecem que disfarço a vida. Que estou morta da tua morte. Que morri a morte que morreste

(na expectativa da luz)

e que cuidaste, talvez, só tua.
Os vivos desconhecem que nada sei já também. Porque nada posso já saber. Não posso regressar da (tua) morte.
Mesmo se, às vezes, parece que sei

(a cabra!)

Mesmo se, às vezes, procuro regressar

(com melhor ar! E mais bonita! Que andará a fazer?)

na expectativa da luz.


(antes publicado, com outra banda sonora em Bebedeiras de Jazz)

Tuesday, June 06, 2006

2º Regresso (ou onde aparece de novo uma mulher sem talento. Não a mesma. E se ouvem vozes)

(Há tantas vozes dentro de uma pessoa. Qual é a verdadeira?)

Nunca tive talento para nada. Ou para pouca coisa. Tenho olhos. E mãos. E braços. E pernas. Um corpo. Mas é tudo a mais. Olhos a mais. Mãos a mais. Braços a mais. Pernas a mais

(há tantos corpos dentro de uma pessoa. Qual é o verdadeiro?)

Dissolvo-me na demasia do meu corpo. Não sei que fazer com tantas vozes, com tantos olhos, com tantas mãos, com tantos braços, com tantas pernas. Dissolvo-me.

Por vezes dizem-me tens uns olhos tão bonitos. E eu penso falarão de quais? Outras vezes confrontam-me com a magia das minhas mãos ou a estreiteza dos meus braços e eu pergunto(me) de que falam? Ainda de outras vezes recriminam-me não dizes coisa com coisa e eu sei

(há tantas vozes dentro de uma pessoa)

o que querem dizer. De vez em quando ouço umas vozes dentro da minha cabeça. Vozes sussurrantes. Vozes que gritam. Vozes tristes. Vozes felizes. De vez em quando ouço umas vozes. Não sei se os outros as ouvem ou sou só eu que sei

(há tantas vozes dentro de uma pessoa)

o que as vozes me dizem

(qual será a verdadeira?)

Dissolvo-me em ausências. De outros corpos. Com olhos e mãos e braços e pernas a mais. Esses outros corpos que me fugiram. E que levaram as suas vozes. Em dias como hoje queria estar inteira. A uma só voz. Sem nada que me sobrasse. Mas não tenho talento para nada. Nunca tive talento para nada. Ou para muito pouca coisa. Nem para me reunir. Para reunir os cacos. Das ausências sucessivas dos outros

(que me imponho)

que me fugiram. E eu não sei porquê

(ou sei. Mas não interessa)


Não sei qual foi o olhar, a voz, que os fez fugir. Sei apenas que fugiram por eu ter tantas coisas em demasia. E não ser capaz de reconhecer as verdadeiras.

As pessoas têm tantas certezas

(quais serão as certas?)

As pessoas têm a certeza que só há um caminho. Uma voz. Um olhar. Uma verdade. Sobre qualquer coisa. A mim falta-me o talento onde me sobram membros, olhos e vozes.

Em dias como este, fico mais paciente. Não sei porquê. Sinto as saudades a esmagar-me a cara toda. Tenho um buraco fundo dentro. A tua ausência. E ouço as vozes na minha cabeça

(qual será a verdadeira?)

Uma espera:
«meu amor, reconheço que errei. Tu trouxeste apenas alegria à minha vida. E eu sacudi-te com os meus múltiplos braços para fora dela. Meu amor, se regressasses, eu ficaria bem. Tenho a certeza que não ouviria tantas vozes e que os meus braços e pernas seriam só dois. De cada. Como é natural. Teria só dois olhos e seriam teus. E como antes podíamos ser felizes. Devias desculpar-me tudo. Até a mentira que te atirei como verdade. A última maldade ditada por uma voz qualquer que ouvi então. Devias voltar a amar-me. Para que tudo fizesse novamente sentido e eu regressasse a mim. E pudesse ter certezas. Como qualquer pessoa tem».

Outra suplica:
«manuel, eu não sou eu. Enlouqueci por tanto te querer e por não saber que também me querias do mesmo modo. Desculpa o que te fiz, por favor... por favor... regressa aos meus braços (mesmo que sejam muitos), deixa-me olhar para ti outra vez (com os meus mil olhos)... por favor... 'deixa-me ser a tua sombra, a sombra da tua mão, a sombra do teu cão'... mas não me deixes aqui sozinha, porque morro».

Outra resmunga:
«Estúpido. Fico muito melhor sem ti. Com todos estes braços e olhos e vozes, para abraçar outros, para falar a outros, para olhar para outros. Ainda bem que te foste embora. Não te atrevas a falar mais comigo. Seja por que razão for. Cansei-me da tua incompreensão. Cansei-me que para ti o amor fosse uma coisa tão pouca. Ainda bem que te foste. Não voltes nunca mais. Estou cansada. Exausta. Quero pessoas novas, coisas novas... quero tudo novo na minha vida. Adeus».

Outra provoca:
«manuel, se achas que foste o único, estás enganado. Informo-te que dormi com quase todos os teus amigos e que todos eles se revelaram melhores homens que tu. Lamento dizer-te isto assim. Já sei que vais dizer que sou uma cabra. Vais acordar-me de madrugada e vais chamar-me 'cabra de merda'. Ora sou cabra sim, nunca o escondi. Mas, pelo menos, resta-me o consolo de homem nenhum, nunca, me ter deixado por uma coisa tão prosaica como outra mulher. Deixaste-me porque eu tenho olhos a mais. Vozes a mais. verdades a mais. Eu sei lá. Mas queria que soubesses disto. Que dormi com eles sim. E com outros. Isso não faz de mim pior mulher ou de ti pior homem. Mas faz de mim aquilo que, de madrugada, me vais chamar. E sabes? Manuel... ouvir-te chamar-me isso, enquanto desenrolo os meus demasiados braços e pernas de dentro do sono, faz-me desejar-te até ao insuportável».

Outra esquece, mas hesita:
«amélia, não olhes para o lado. Ou para trás. Não penses mais. Ele não te quer. Pois se te quisesse não teria vindo procurar-te? Não te telefonava? Não te mandava uma carta? Não abalaria a correr por aí acima para te abraçar? Ah mulher! É no que dá! Braços a mais, pernas a mais, olhos a mais. Vozes a mais. Assim não chegas lá. O melhor é andares para a frente. Esqueceres-te dele. Sim, se se deu ao trabalho de te chamar cabra às 6 da manhã, sabendo bem que estarias a dormir, é porque ainda sente alguma coisa... qual coisa? Mera reacção de vingança contra o que lhe disseste, a verdade mais mentirosa que lhe atiraste, só porque sim. É bem feito! Para que aprenda! Mas aprenda o quê? Na verdade, não devias ter feito aquilo. O feito, feito está? Amélia, rapariga, és mesmo cabra. Não te rias de ti mesma. És má. Pois, má mesmo. E sem talento para nada. Ele amava-te não era? E tu que fizeste? Pois, Amélia, sem talento. Agora, olha, esquece».

Não tenho talento para nada. Talvez só para me dissolver no meio das vozes que me ocupam. Em dias como este. Ou noutros dias quaisquer. Quando me vejo cheia de braços e de pernas e de olhos e de ausências. Nunca tive talento para nada. E ouço todas estas vozes

(há tantas vozes dentro de uma pessoa. Qual será a verdadeira?)

Sunday, June 04, 2006

2º Assombro (ou onde se fala dos mortos como estranhos frutos, de vento, um pouco por causa de 'Strange Fruits' de Billie Holliday...

... um pouco por causa de outra coisa qualquer... já não sei bem o quê)

E o baloiço oscila ao vento. Agora só.

(Poucas crianças há no parque a esta hora).

Sento-me no baloiço e tento lembrar-me de Helena. Maria Helena. Era miudinha. Com os cabelos da cor de um castanheiro no Outono. A cor dos olhos já não a sei. Nem o tom da pele. Nem o da voz. Nem o aspecto que tinha nas manhãs frias de inverno. Mas lembro-me bem de como andava de baloiço Maria Helena. Oscilava com ele e com o vento. Maria Helena era o vento, nas tardes vagarosas em que escapávamos às aulas e procurávamos voar

(como o vento)

oscilando no baloiço. Por vezes eu empurrava. Devagarinho. Para que Maria Helena não caísse. Outras vezes empurrava-me ela. Com toda a força que conseguia ter. E mesmo assim, eu apenas ondulava até ganhar balanço

(pernas esticadas, pernas dobradas. Pernas esticadas, pernas dobradas).

E voava mesmo. Eu. Lembro-me de tudo isto, enquanto estou sentado no baloiço. Sozinho agora. Sem a Maria Helena e os seus cabelos da cor tomada pelas folhas dos castanheiros, no Outono.

(Já o disse).

Acendo um cigarro e a ponta arde. Parece que na mesma cor que tinham os cabelos de Maria Helena.
Estava capaz de a ver chegar parque adentro. Não já pisando a areia, como antes, mas este chão que agora põe nos parques infantis

(onde nem os cães se atrevem a fazer chichi, onde nem perdemos as pequenas coisas que carregamos nos bolsos. Ou as memórias).

Não sei onde deixei de me recordar de Maria Helena. Não sei em que outro parque perdi a sua memória quase toda.

(Maria Helena).

Voltei a lembrar-me de como ela oscilava com o baloiço e com o vento.

(Hoje).

Foi quando me contaram. E aqui estou no baloiço, à espera que os cabelos de Maria Helena atravessem o portão. Não sei porque ainda espero. Que os cabelos dela atravessem o portão.

Lembrei-me de tudo há pouco. Há mais de vinte anos, numa noite qualquer, a minha mãe perguntou-me, recriminadora, que andava eu a fazer, pelas tardes, com a Maria Helena.
Eu respondi-lhe com a verdade, que é sempre mais difícil de sustentar que a mentira:
- andamos de baloiço, mãe.
A mão da minha mão voou mais depressa que o baloiço, naquela noite. Mas não me importei. Pensei na Maria Helena e nos castanheiros e no vento. E lembro-me de não ter chorado.

Hoje a minha mãe perguntou-me, sem recriminações, mas com um tom cinzento na voz:
- Lembras-te da Maria Helena? Aquela miudinha ruiva com quem ensaiavas brisas e vendavais, no baloiço, em vez de estares a resolver equações?


E de repente a Maria Helena, em quem não pensava há tantos anos entrou-me cabeça adentro

(ou mais exactamente os cabelos de Maria Helena e o modo como ela oscilava com o baloiço e com o vento).

Disse:
- Sim, mãe, lembro-me. Que aconteceu?
- Morreu, filho. A Maria Helena morreu.
- Morreu como, mãe?
- Morrendo, filho. Há outra maneira de morrer senão morrendo?

De repente a ideia da Maria Helena a oscilar com o vento no baloiço acertou-me não sei onde. Cá dentro. Não sei onde. Mas senti que o sangue começou a circular mais depressa.

(O medo de saber).

- Mas como, mãe, de quê?
- Morreu matando-se, filho. Um dia triste. Uma vida triste, a dela.


Pensei na Maria Helena que, porque nunca mais a ter visto, tinha permanecido para sempre pequena, num canto da minha memória. Agora morta.

(E tão pequena).

- Mas uma vida triste, porquê, mãe?
- Não sei bem. Parece que há uns tempos se apaixonou por um escritor. Daqueles que não aparecem nas revistas e não vão à televisão. Não sei sobre o que escreve. Nunca li nada dele.
- Que escritor?
- Não me lembro do nome. Só sei que é famoso mesmo não aparecendo. Toda a gente fala nele. Mas acontece que a Maria Helena se apaixonou por ele. Ou pelo que escrevia. Talvez seja o mesmo. Escrevia-lhe cartas. Telefonava para a editora. O escritor nunca lhe respondeu. Nem um autógrafo lhe mandou. Uma fotografia. Nada.
- E ela matou-se por causa de uma pessoa que não conhecia, mãe?
- Um dia, há uns meses, o escritor publicou um novo livro, segundo me contaram. Numa das páginas do livro, a Maria Helena leu uma frase que lhe tinha mandado, numa das cartas não respondidas...
- Que frase, mãe?
- Espera, acho que a anotei em qualquer lado. Era impressionante.

Fiquei sozinho por momentos na cozinha da casa de quando era pequeno. O sangue continuava a circular

(com o ritmo do medo).

- Olha, está aqui a frase.


Peguei no papel, uma conta de supermercado amarrotada. O sangue não parava. Saí da cozinha. Corri até aqui. Ao baloiço. Sentei-me. Acalmei o sangue com os cigarros e as recordações de Maria Helena. Reconheci a frase mesmo antes de a ler. Publiquei-a. Pensei que era minha. Ninguém sabe, nem sequer a minha mãe, que o escritor famoso sou eu.

(Não apareço. Não uso o meu nome).

A frase era dela? A frase que publiquei como minha, era dela? Pensei que era minha. No meio de tanta coisa.

(Olhei o papel amarrotado. Lá estava o que era de Maria Helena e que cuidei meu)

«o baloiço oscila ao vento, como sempre. É com o que sonho todos os dias. O baloiço oscila ao vento. Como os mortos se baloiçam, no Outono. Pendurados nas árvores, contra a paisagem. Contra a vida. Pendurados nas árvores. Como estranhos frutos de vento. Os mortos».

Matou-se a Maria Helena

(matei a Maria Helena)

no Outono. Oscilando ao vento no castanheiro com as folhas da cor dos seus cabelos. Como um baloiço. Como um fruto. Estranho. De vento.

(texto apresentado, com algumas alterações à 2ª edição do concurso O Escritor Famoso, lançado pelo blog Divas & Contrabaixos, segundo o mote do vencedor da 1ª edição, o autor do Bagaço Amarelo. O mote era: e o baloiço oscila ao vento. Foi publicado no mesmo Divas&Contrabaixos e no extinto Pilar da Ponte de Tédio. Parece-me que o texto ficou em 3º lugar, com mais uns quantos, muito melhores).

Friday, June 02, 2006

2º Destroço (ou onde se recolhe e se repete a memória de uma bicicleta vermelha e das gaivotas que com ela voavam)

Passam diante de mim estas gaivotas. E o que tenho para te dizer... é o absurdo de tudo isto. Absurda a água que vejo da janela. O dia cinzento. Esta água cinzenta que me aproxima do mar. Como a ti te aproximava. Embora eu, sem a bicicleta em que voavas. Com as gaivotas. Nestas tardes assim. Paradas. Estreito o convívio com as gaivotas, nestes dias. Sem ti. Nestes longuíssimos dias. Em que me entretenho. A enganar a tua morte. Ou a minha vida. O que é o mesmo. O treino diário a que me obriga a evidência da tua morte faz-me tão diferente do que fui quando ainda estavas vivo e agarravas a bicicleta

(era vermelha a tua bicicleta. Dei a tua bicicleta vermelha. E às vezes vejo o teu pai passar montado nela. Agarrado a ela como se agarraria a ti se soubesse que um dia a tua bicicleta vermelha ficaria para trás, na precipitação da tua morte).

Absurdo este reparar no movimento das asas das gaivotas sobre as águas cinzentas da ria. Num dia assim. Cinzento e murcho. Como as pétalas das flores que raramente me davas. Morrem depressa as flores. Como tu. Guardaste toda a fragilidade das pétalas para o dia em que, absurdamente, deixaste de agarrar a bicicleta

(era vermelha e ainda é).

Partias com tanto vento que, ao ver-te pedalar, não se via em ti a morte, mas a vida. E estas gaivotas rasantes a estas janelas tão grandes onde, às vezes, lá em baixo, vinhas chamar-me. Amor. E eu escancarava a janela e perguntava-te se querias subir tu ou se descia eu. Escolhe tu. Dizias. E a bicicleta

(vermelha)

agarrada à tua mão. E eu escolhia. E às vezes era eu que descia e outras eras tu que subias. Dessas vezes, deixavas a bicicleta

(que sem ti, era sempre vermelha, mas não tinha asas, parecia uma gaivota murcha)

encostada à porta do sítio onde tenho esta janela grande, com a ria ao fundo e as gaivotas rasantes. Deste sítio em que vou perdendo os dias. Todos os dias em que não estive contigo. E não ganhei o teu sorriso. Deste sítio onde estou agora. Tão diferente. Deste sítio de onde não quero sair porque me parece que hás-de aparecer lá em baixo, com a bicicleta vermelha, que agora roubaste ao teu pai, para me chamar.

(Amor).

Não sei o que dizer-te desta diferença que sinto no modo como reparo agora nas coisas todas só para perceber que não existes. Que já não nos sentamos os dois, nas tardes tão grandes de domingo, a ler os livros que me davas e que ficaram para sempre. Os livros que eram as flores que não gostavas de me dar. Porque morriam para sempre. Como tu. Agora. Não sei o que dizer-te a cada vez que abro os livros que eram as flores e de dentro deles salta a tua bicicleta e tu todo. Tu rodeado desta cinza das asas das gaivotas. E eu, aceno-te de fora. Chamo-te.

(Amor).

Tenho tentado reparar nas coisas como se existisses ainda e pedalasses em mim, como o sangue. Na bicicleta vermelha. Mas não sei para onde me escorreu a paciência. E para onde foram aquelas tardes de domingo. Tenho tentado chamar amor, lá em baixo, a ver se me apareço cá de cima.Mas a pessoa que me aparece é sempre tão diferente de mim quando era eu que te aparecia. Nessa altura não reparava como é triste o movimento das asas das gaivotas. Nessa altura as gaivotas vestiam-se de vermelho e eram a tua bicicleta. Ou o meu sangue. Tenho tentado chamar amor a tanta gente, em toda a parte. Aqui neste sítio. Noutro sítio. Mas é sempre a bicicleta que salta do silêncio em que me vejo, depois, mal acabo de pronunciar o amor.

(A bicicleta. Amor).

E passam diante de mim estas gaivotas. E, na verdade, 'o que eu queria dizer-te nesta tarde nada tem em comum com as gaivotas'.

(antes publicado mais ou menos assim, em A Vida Segue Dentro de Momentos, um blog morto. E depois voltado a publicar, assim mais ou menos e com outra banda sonora, em Bebedeiras de Jazz, um blog ainda vivo).

Thursday, June 01, 2006

1º Regresso (ou onde se conta uma história. De uma mulher sem talento. E de um homem que nunca a quis)

Digamos que nunca me quiseste. De verdade. Nunca me olhaste nos olhos de modo a que se visse que me querias. Tentaste agarrar-me uma ou duas vezes na mão. E não percebi. Para que daria eu a mão a um homem que, digamos, nunca me quis? Fodeste-me muitas vezes. E eu quis. Ou eu deixei. Ou eu já não sei. Fodemos, pronto! Sim, não te irrites Jorge. Sabemos que não tenho talento para nada. Quanto mais para construir frases com jeito! Não tenho talento para me pintar. Nem para me vestir como as tipas para quem olhas embasbacado e completamente parvo. Essas com madeixas loiras no cabelo, cintos dourados, barrigas à mostra e saltos agulha. Ah! E a roupa toda muito justa. Parece que vai saltar sempre qualquer coisa daquela roupa. Acho que é disso que gostas, Jorge! Dessa coisa que vai saltar lá de dentro e que, apesar de saberes, nunca sabes bem o que é. Mas eu nunca tive talento para me arranjar assim. Eu detesto roupa apertada e só de pensar em saltos altos começo a ver tudo a andar à roda. E esta náusea. As vertigens. Pois.
Digamos que nunca soube por que raio me querias foder precisamente a mim. A mim, a tipa mais vulgar que alguma vez tiveste. Quero dizer, Jorge, a tipa mais vulgar pelo menos pelo que me contas das outras. Das que tiveste antes de mim. Ou durante. Já não digo nada. Não te irrites Jorge! Está bem. Não tiveste mais nenhuma desde que me andas a comer. Ó pá! Pronto! Só comes uma gaja de cada vez. Está bem. Tu não te irrites que para irritações já basta o que basta. Pois. A tua mãe no hospital. A tua ex-mulher que te faz a vida negra. O teu filho adolescente a fumar charros. Sim. Pois. Como se tu não os fumasses, Jorge! Deixa o puto, logo lhe passa. Bem, a ti não te passou. Sim, é só de vez em quando. Sim, eu também os fumo às vezes. Está bem. Sim, nós somos adultos Jorge. Sim, ele é um puto. Ó pá, está bem. Não te chateies que eu só quero falar contigo. Para quê? Ora, para quê?! Digamos que para te dizer que eu sei que tu nunca me quiseste. E que eu estou farta que não me queiras. E que me comas por desfastio. Ou porque as loiras falsas e boazonas não te ligam peva. Essa é que é essa, Jorge. Quem? A Marília da administração? Essa vaca! Não me admira que essa puta te faça olhinhos. Faz olhinhos a qualquer um. Bom, adiante, Jorge, que eu ainda tenho roupa para passar e queria ver se, ao menos, cortava as unhas dos pés hoje. Se podes passar cá? Para quê Jorge? Para eu te arranhar com as unhas dos pés, enquanto te faço o quê?!? Porco. Só pensas em porcarias. Nunca me olhaste nos olhos de modo a que se visse que me querias e ainda queres que te arranhe enquanto te faço isso!??! E mais o quê?!? Que te faça mais o quê?!? Pois, disso gostas tu meu cabrão! Agora de mim, de mim, que tenho tanta roupa para passar e as unhas dos pés de um tamanho que nem queiras saber, de mim... nem sequer sabes de que cor são os meus olhos! Verdes? Verdes!???? Verdes são os olhos da puta da Marília, meu porcalhão. Aposto que para ela já olhaste como que a dizer-lhe que a querias. Pois fica sabendo que comigo acabou. Era o que te queria dizer desde que a conversa começou. Acabou! Não te quero ver mais! Não insistas, Jorge. Ver-te para quê? Para estares a pensar na Marília enquanto te vens? Para estares a pensar nas mamas da Marília, no cu da Marília, nas unhas enormes e pintadas de roxo da Marília? Nem penses! Quero que te fodas, meu grande animal! Fodes mas é comigo?!? Para isso era preciso que eu quisesse, não achas? E eu não quero mais. Acabou-se! Não, não vou ter saudades. Não, não quero saber que venhas para aqui para a porta fazer chinfrim! Faz o que quiseres. Gajos como tu há aos pontapés, estúpido! Gajos como tu, como eu todos os dias ao pequeno almoço, imbecil de merda. Ora bem! Essa é que é essa! Gajos como tu, assim tão ordinários, tão porcos, tão cabrões, tão estúpidos, tão imbecis, tenho eu quantos queira! Ah pois! Apesar de não ter mamas, nem cu, nem os olhos verdes, nem as unhas pintadas de roxo como as dessa cabra que te faz olhinhos! Gajos como tu, assim tão porcos, tão cabrões, tão ordinários, gajos que me dão uma tusa do caraças, gajos que me fodem como tu... ó pá, assim como tu... tenho eu às pazadas... pois... sim... não... ó pá, não sei... olha, a que horas podes passar cá, afinal? É que eu tenho a roupa para passar ainda e as unhas... e... sim, sim. Está bem. Quando quiseres, então. Sim. Espero por ti. Está bem, eu não corto as unhas. Sim... e posso pôr aquele vestido justo que me deste nos anos. Está bem... e os sapatos de salto alto que me ofereceste no Natal. Sim e pinto as unhas de vermelho. Sim, querido, mas vem já então, que se foda a roupa para passar... passo amanhã. Pronto.
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