Wednesday, October 25, 2006

9º Assombro (ou um nome que me sirva. Como a chuva, por exemplo)

Quando chove as pessoas dizem: todas as coisas
(as coisas todas e tudo o que há nas coisas)
ficam tristes. E é sempre o meu nome que ouço
(o único que sei servir-me).
Quando chove com a vagarosa gravidade das coisas tristes
(todas)
é sempre o meu nome que cai nas gotas transparentes. Quando chove devagar há quase sempre um saxofone
(por exemplo)
que acompanha as gotas como se a melancolia invadisse as ruas por onde passam pessoas. E as casas, e a pele e os ossos delas. Porque quando chove
(um saxofone rouco)
todas as coisas ficam tristes. E os salpicos que as luzes transformam em água verdadeira mancham-nos a bainha das calças
(o bater do coração).
A chuva traz o meu nome
(o que me serve)
não sei de onde. E à pergunta que me fazem, não respondo
(não sei),
nunca sei como hão-de chamar-me os outros. Os que dizem quando chove as coisas ficam
(tristes)
molhadas. Não é nome que te sirva. E eu que só reconheço as gotas e as notas melancólicas
(por exemplo)
dos saxofones na chuva, eu, não respondo
(respondo sempre)
que não tenho
(outro)
nome que me sirva. Que todos os nomes que me deram não são meus
(nunca foram),
apesar de voltar sempre a cabeça ou chegar-me à beira da realidade como quem existe mesmo,
(mas não)
em nenhum dos nomes que me deram me encontro toda
(com a bainha do coração molhada)
como naquele que a chuva traz
(do fundo do inverno),
como naquele que a água me cola aos ossos, quando cai, anunciando
(um nome que me serve)
a tristeza que há nas coisas.

Sunday, October 22, 2006

9º Regresso (ou o sangue gasto. A solidão. O medo. Ou mergulhar)

Tenho medo
(não sei nadar)
do sangue gasto a viver muito devagar. Tenho medo
(da morte)
de compreender tudo muito bem e depois
(nada)
não ser capaz de continuar a acreditar que o sangue não se perde com
(a vida)
o amor. Tenho medo
(do sangue)
de fixar os olhos num ponto até me esquecer da sua cor. Tenho medo de
(adormecer)
acordar e perceber que a cor dos olhos importa para aquilo que se vê. Tenho medo de me ver ao espelho e descobrir
(a solidão)
que não sou eu quem para mim olha
(quem olha para mim?)
quando é a mim que vejo no fundo do vidro
(embaciado).
Nunca soube quem era e agora é tarde. Quando me vejo
(quem és?)
no espelho surpreendem-me sempre aqueles olhos sem cor. A pele sem companhia. As rugas a crescer à minha volta.
Nunca soube quem era
(agora é tarde),
mas tive sempre o impulso do mergulho, dado pelo espelho. Somos mergulhadores
(solitários)
no sangue dos outros. Ou nas lágrimas. Ou ainda na solidão inquieta
(a nossa)
que nos estende as suas águas de vidro. Diz-me o espelho que mergulhe
(tenho medo)
que aceite o impulso, a ausência da cor, as lágrimas menos vezes
(nada).
Não sei mergulhar. Nem nadar. Nem fixar-me. Neste sangue que devagar me circula. Neste insuficiente sangue. Neste sangue que não chega para me dar cor aos olhos, à pele, à vida ou só a mim. Depressa de mais
(quem dá corda aos relógios?).
Mas doem-me os músculos todos de chorar menos
(aprendem-se as lágrimas menos vezes?).
Sinto o pescoço duro como se fosse de madeira ainda agarrada à árvore de seiva a circular, como o sangue
(devagar),
uma madeira viva. Nunca soube viver
(agora choro menos)
e é tarde. Tenho medo da morte, do amor, de mim diante do vidro líquido que me empurra para o mergulho. Tenho medo de compreender
(alguma vez)
tudo muito bem e depois esquecer-me de que é preciso aprender
(nada)
para sempre
(a solidão, o sangue que não se gasta afinal, o medo)
a mergulhar.

Monday, October 02, 2006

8º Regresso (ou onde, sem vontade, se interrompe. E apesar disso, se continua)

Havia outras possibilidades sim estou certa que havia outras possibilidades não o fazer sabes se calhar só essa não o fazer e assim mesmo estou certa que o teria feito como o fiz ou como o fizemos quem fez o quê antónio ainda te lembras ainda és capaz de reconstituir momento a momento o que foi que fiz o que foi que fizemos o que foi que me fizeram aposto que não és já capaz não estiveste quando as possibilidades que havia se esgotaram para a única realmente possível mas lembras-te do resto antónio ainda te lembras do resto ou sou apenas eu com o que poderia ter feito com o que fiz com o que fizemos com o que me fizeram que não sou verdadeiramente capaz de esquecer já passaram quase vinte anos e até isto é estranho terem passado vinte anos terem passado vinte anos e eu ainda ser capaz tão capaz de me lembrar de tudo sempre detalhadamente ao segundo primeiro as náuseas de manhã aquelas náuseas que não podia atribuir ao excesso de alcóol da noite anterior bebíamos bastante naquele tempo ou seja há vinte anos bebíamos como se fosse imperioso beber à medida que falávamos e esperávamos eléctricos que já se sabia nunca chegavam a tempo de me levar para casa mas assim mesmo sentavas-te comigo nas paragens dos eléctricos comigo à espera que nenhum viesse a tempo de me levar para casa aquelas náuseas de manhã depois os teus olhos desconcertados defronte dos meus iguais o espanto termos apanhado aquele eléctrico mesmo sem estarmos exactamente na paragem à espera dele eu fiz anos lembras-te disto antónio ía fazer vinte anos e fiz desconcertadamente como pude eu fazer vinte anos se era velha de repente como o mundo se tinha apanhado o eléctrico onde fugi numa direcção indistinta as náuseas se de repente tinha de tomar uma decisão a maior como pude eu fazer vinte anos entre todas aquelas pessoas que não sabiam do desconcerto dos eléctricos das decisões da fuga indistinta chegavam abraçavam-me bebíamos imperiosamente aos meus vinte anos um deles abraçou-me com força cheiras a leite eu fugi à procura do eléctrico mas só encontrei uma pedra e acabei por me sentar e foi ele que me encontrou não tu desconcertada e indistinta sentada na pedra como se a pedra fosse o meu lugar não sei a que horas foi ele desconcertar-se comigo tinha os olhos azuis e ali ficou indistinto e ligeiramente bêbado sem dizer nada pensando o óbvio toma a decisão há outras possibilidades não o fazer mas fá-lo que vais tu fazer que vou eu fazer que vamos fazer o óbvio disseste-me tu queres estragar-nos a vida e nunca mais te sentaste comigo nas paragens dos eléctricos à espera que nenhum viesse a tempo sentaste-te depois à espera que um viesse e me levasse depressa as náuseas e eu disse sim mas pensava grandes relvados verdes e miúdos de cabelos louros a correr e eu disse sim não quero que a nossa vida se estrague mas sabia que a vida se estragava logo ali como pude eu fazer vinte anos antónio como pude tê-lo feito o que fizemos o que me fizeram e assim mesmo continuar como se ainda te sentasses comigo à espera que nenhum eléctrico me levasse e eu fi-lo fizemo-lo ou fizeram-me não quiseste ir lembras-te deste-me dinheiro entrei num sítio qualquer que interessa o sítio alguém me falou num sítio e podia ter sido outro alguém me mandou despir numa casa de banho e eu despi-me até aos ossos havia um prato de comida para os gatos que não vi apenas as espinhas de peixe que se pareciam comigo desconcertada e nua depois disseram-me deite-se aqui e ponha um pé em cada estribo e eu deitei-me abrindo as pernas agora feche os olhos disseram-me relvados cabelos louros passos pequenos e eu fechei os olhos taparam-me o nariz e a boca com uma concha preta e disseram-me respire fundo e respirei fundo com as pernas abertas com o desconcerto indistinta sem conserto uma espinha de peixe os gatos na casa de banho o corpo nu as vozes respire continue a respirar estava adiantada por pouco não dava ouvi-as remexerem-me arranharem-me a carne sem dor respire fundo e fundo respirei e respirei cada vez mais fundo já está levante-se com cuidado vista isto deite-se aqui e deitei-me como um boneco vazio deitei-me numa casa estranha deitei-me vazia já pode vestir-se e ir-se embora e eu vesti-me vazia e antes de me ir embora paguei e antes de me ir embora ainda me mostraram o que me deixou vazia havia outras possibilidades não o fazer mas já foi feito saí liguei-te de uma cabina apanha um táxi anda para casa uma receita na mão uma mão cheia de recomendações o corpo vazio eu indistinta e apanhei o táxi que já não sabia andar de eléctrico e fui para tua casa não me abraçaste não me perguntaste como estava como tinha sido e fizeste-me qualquer coisa para o almoço como se tivesse fome e eu respirei fundo diante do bife respirei fundo antes de começar a chorar num choro baixo estás a chorar para quê nada estou a chorar para nada estou a chorar porque nunca mais vou ser capaz de andar de eléctrico percebes porra não chores para que choras agora achas que havia outra possibilidade não se calhar só essa a que está feita se calhar só não o fazer levantaste-te da mesa deita-te e eu deitei-me fica aí a descansar vê se descansas joana vou à farmácia comprar o que te disseram para tomar não me abraçaste lembras-te antónio nunca mais me abraçaste desde esse dia e saíste e eu fiquei deitada no sofá a olhar para o castelo em frente e a pensar em nada estou a chorar para nada enquanto apalpo a barriga e sinto o sangue correr ainda o sangue estou a chorar porque nunca mais quero esperar que os eléctricos não cheguem estou a chorar porque quero ir para casa estou a chorar porque nunca mais me abraçaste estou a chorar porque nunca tive filhos estou a chorar porque acabei por te odiar um pouco muito pouco mais à frente estou a chorar porque continuei a lembrar-me porque continuei desconcertada e indistinta sem perceber como pude eu fazer vinte anos e não ter sido essa a melhor idade da minha vida estou a chorar porque vinte anos passados ainda me lembro dos eléctricos das náuseas de respirar fundo de respirar e doi-me.
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