Friday, June 09, 2006

3º Destroço (ou onde ainda se fala da morte e da expectativa da luz)

Os mortos nada sabem, porque já nada podem saber. Da morte não se regressa.
Mesmo se, às vezes, parece que os nossos mortos (nos) sabem

(certamente à força de tanto querermos que saibam).

Mesmo se, às vezes, parece que os nossos mortos regressam

(certamente à força de tanto querermos que regressem).

Não há regresso nem conhecimento para os mortos

(mesmo se, às vezes, parece que ainda há quem nos (re)conheça, estando morto).

Morreste(me). E já não podes saber nada de quem sou

(se nem eu sei).

Já não podes saber que é a ti que procuro quando só outros encontro. Outros que não estão mortos

(mas, na verdade, tanto me fazia se estivessem).

Já não podes voltar(te) quando te chamo

(porque preciso de ti)

às vezes com o desespero de precisar só da tua mão percorrendo o meu cabelo. Outras vezes com o brutal desejo dos teus braços. E, raramente, com a certeza de que me ampararias as lágrimas.
Disfarço. Que a morte assusta os vivos. Os nossos mortos assustam-nos os vivos. E, assim sendo, para que ninguém se assuste, disfarço

(está este calor dissolvente e os mosquitos agrupam-se no vidro, na expectativa da luz).

Morreste(me) e não penses

(como se pudesses pensar ainda)

que te esqueço quando procuro e, por vezes encontro, outros braços, outros corpos, outros que (me) encontram quando, por vezes, procuram. Não penses

(como se pudesses pensar ainda)

que não é a ti

(e só a ti)

que sigo querendo

(na expectativa da luz).

Disfarço

(um mosquito entra dentro do quarto demasiado quente, apesar da janela fechada. Há sempre pequenas brechas para quem procura. A luz)

e mesmo assim. Nos percursos diários. As pessoas revelam-me o que, embora vivas, desconhecem. Estás com bom ar. Estás mais bonita. Que tens andado a fazer?

(A cabra! Com melhor ar! Mais bonita! Do que o antes da tua morte!).

Disfarço. Nos percursos diários. Revelam-me o que (ainda) não se sabe.
O que ainda se desconhece é que morrendo, me mataste

(e, já se sabe, aos olhos dos vivos, os mortos serão sempre mais bonitos do que alguma vez foram em vida).

Os vivos desconhecem que disfarço a vida. Que estou morta da tua morte. Que morri a morte que morreste

(na expectativa da luz)

e que cuidaste, talvez, só tua.
Os vivos desconhecem que nada sei já também. Porque nada posso já saber. Não posso regressar da (tua) morte.
Mesmo se, às vezes, parece que sei

(a cabra!)

Mesmo se, às vezes, procuro regressar

(com melhor ar! E mais bonita! Que andará a fazer?)

na expectativa da luz.


(antes publicado, com outra banda sonora em Bebedeiras de Jazz)

6 Comments:

Blogger George Cassiel said...

Ora aqui está uma boa razão para ter voltado a este blog!

10/6/06 1:13 PM  
Blogger della-porther said...

Talvez wuem saiba da morte possa eu regressar e te contar como é....
Bjks

Della-Porther(Emília Couto)

10/6/06 4:59 PM  
Blogger Elisa said...

Obrigada Geoge. Volta sempre. Quando tiveres paciência e tempo para ler estes textos.

11/6/06 12:33 PM  
Blogger Elisa said...

Hum... duvido Della, mas ainda assim agredeço :-)

11/6/06 12:34 PM  
Anonymous Anonymous said...

Brilhante! Simplesmente brilhante!

13/6/06 6:57 PM  
Blogger Elisa said...

Firvidas
Brilhante é exagero. Mas obrigada. Muito obrigada por leres.

14/6/06 9:01 AM  

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