Friday, July 28, 2006

6º Assombro (ou de como regressas para ver melhor quem sou. E apesar disso, talvez me salves)

Meto a chave na fechadura

(ainda estou do lado de fora),

a porta abre-se e dou as costas ao átrio enquanto faço a chave regressar à fechadura

(ainda estou do lado de dentro).

A porta fecha-se com algum vagar. Já não tenho pressa. Volto-me para o átrio e encontro-te meio escondido por uma parede. Um olho apenas. Encontro-te regressado para

(me)

veres melhor. Surpreende-me que tenhas refeito alguns passos do teu caminho

(só)

para te certificares que fui eu quem abriu e fechou a porta. Mas nem assim te sorrio. Finjo

(como sempre)

que não te vejo. E desta vez fingir é possível porque tens uma perna atrás da outra e um olho a espreitar

(inclinado)

atrás da parede que fica ao fundo do átrio onde

(fingindo)

permaneço hesitante. Segurando as chaves na mão, dando as costas à porta

(fechada).

Hesito entre ficar aqui dentro ou voltar para fora. Lá fora há um sol amarelo, um caminho demasiado estreito, vidros no chão e uma janela que alguém partiu

(as chaves perdem-se)

e levanto os olhos para a parede onde estavas, regressado e deixo de fingir que não te vejo

(não te vejo)

porque deixaste de me surpreender e continuaste a caminhar

(dou as costas à porta).

Não sei porque caminhas se é como se pertencesses, uma perna adiante da outra, um olho inclinado, àquela parede

(uma janela partida),

à minha surpresa pelo teu regresso para ver melhor quem sou

(eu sou quem?),

apesar de eu fingir que não te vejo, sempre que te vejo, regressar

(uma parede).

Já me vou habituando. Mas tenho saudades de ser uma rapariga

(imaginária)

de longos cabelos, à varanda e de tu não precisares de paredes e de olhares que se inclinam diante daquilo que finjo. Saudades de ser uma rapariga

(vidros pelo chão)

a quem anda não foi necessário salvar. Das chaves

(tenho saudades)

que me deram para meter nas fechaduras destas portas que parece que se abrem e se fecham

(mas não)

para além de nós. Das chaves que me entregaram para abrir vidas, corpos e cabeças

(sem regresso)

e que eu fui perdendo uma a uma, com a persistência cega

(salva-me)

de quem não pode

(perder)

nada. Meto a chave na porta

(ainda estou do lado de dentro)

e a porta abre-se

(resistindo)

como quem me expulsa. E surpreende-me que regresses do lugar

(uma parede)

para onde há pouco caminhaste. Uma perna adiante da outra. Os dois olhos nas minhas costas. E um ruído metálico de qualquer coisa que balanças entre os dedos

(os vidros no chão).

Não te vejo. A porta fecha-se

(ainda estou do lado de fora).

Meto a chave na fechadura e abrem-se os teus olhos

(uma janela partida)

e fingir que não sei que regressaste é impossível. Metes a chave na fechadura e a porta abre-se

(ainda estás do lado de dentro).

Já não finjo. Já não fujo. Sou outra vez a rapariga imaginária, à varanda. E há um ruido metálico

(um espanta-espíritos)

que te acompanha

(ainda estás do lado de fora).

Estendes-me os olhos e eu vejo nas tuas mãos

(salva-me)

as chaves que fui perdendo uma a uma, com a cega persistência de quem queria

(ser uma rapariga)

abrir cabeças e corpos, esperar regressos e não perder

(nada).

E eu vejo nas tuas mãos

(imaginárias)

as chaves

(estamos do lado de fora)

que, apesar de teres regressado

(uma janela partida)

para ver melhor quem sou, talvez me salvem.

Wednesday, July 26, 2006

6º Destroço (ou como a guerra é um bicho cego. E estúpido. Profundamente estúpido)

Travamos estas guerras

(em qualquer palco),

tomando partidos como se fosse urgente saber

(de que lado estamos)

o verdadeiro peso de quem morre. Como se fosse urgente e necessário esclarecermos onde nos encontramos diante da cegueira da guerra

(que travamos)

e dos corpos que caem em nome de deus, do diabo ou de outra coisa qualquer.

(Quando)

A guerra é um bicho cego. E estúpido

(profundamente)

e os mortos têm sempre peso e substância e significado e sentido independentemente de quem os mata. Em cada guerra

(que travamos)

há a cegueira e a estupidez de sermos todos humanos

(e tão pequenos)

e de não termos olhos porque as maneiras de ver são infinitas. E então os nossos olhos estão cegos dos nossos e os olhos dos outros cegos dos outros. E entretanto matamos

(para não morrermos)

em nome de um deus, de um diabo ou de outra coisa qualquer. Matamos para nos defendermos dos olhares

(cegos, como os nossos)

que nos lançam os outros. E morremos

(para não matarmos)

de uma infinita certeza de que estamos

(certos)

a morrer pela verdade

(cegos).

E de outras vezes morremos sem saber

(porque morremos)

quem nos matou. Ou de que foi que tombámos e ali ficámos a auscultar a terra e a cheirar-lhe as entranhas confundidas com o sangue

(o nosso)

à espera que a erva cresça como antes de estarmos cegos

(do olhar dos outros)

de tantas maneiras de ver

(os nossos)

A guerra é um bicho estúpido

(profundamente)

que se alimenta de si mesmo. Que se vai devorando lentamente porque é urgente

(necessário)

pesar os mortos. Contar destroços. Alimentar a cegueira. Tomar partido pela verdade

(é claro),

porque se não somos como eles, seremos sempre contra eles

(há outras maneiras de ver?).

E esta é a perpétua cegueira em que nos movimentamos em direcção

(aos outros)

à terra prometida onde seremos todos

(nós)

felizes. E bons. E continuaremos cegos. E profundamente

(estúpidos)

certos que os que fazemos tombar não somos nós.

Monday, July 17, 2006

6º Regresso (ou os dias perfeitos. O cheiro das camélias. Uma banheira. A água. Os cabelos. Ou o verão, ainda)

Gosto de te ver deitado de costas. Completamente deitado de costas. Nu

(numa nudez única e líquida)

numa maciez dispensada do tacto. Gosto de te ver

(deitado de costas)

o pescoço, onde os dias são perfeitos, o mundo a começar onde os teus cabelos nascem, as tuas nádegas desenhadas como na água, nos lençois

(o verão, ainda).

O cheiro das camélias, se é de noite, a encher-te as costas. As plantas dos teus pés, sossegadas, como raízes. A música a desprender-se da curva da tua cintura. As mãos assentes debaixo da cabeça e os teus dedos, compridos como pequenas árvores

(a sombra das tuas pestanas a espalhar-se como o cheiro das camélias).

Gosto de te ver deitado de costas

(numa nudez abandonada e única)

e os meus olhos são

(como manhãs de domingo)

as pequenas flores do jasmim que estremece lá fora, na urgência da água.

Estás deitado, de costas. Nu como mais ninguém está nu

(líquido)

e os meus dedos são

(dias perfeitos)

a única parte do teu corpo que te pertence. A curva das tuas nádegas

(uma banheira onde flutuam os meus cabelos)

o lugar onde se encontra o sentido das árvores vagarosas

(ainda o verão)

Há uma janela aberta. Os teus poros nascem do cheiro do vento. Ao longe o mar. As camélias. Os meus cabelos que dançam devagar

(as tuas mãos, arados a devolver-me a possibilidade do fruto).

Há uma janela aberta, ouve-se a água na banheira. O movimento perfeito dos teus dedos como pequenas árvores

(ou as pétalas das camélias)

nuas na minha pele. Lá fora cresce o mundo. Na varanda o mar imensa-se. Levantas-te

(gosto de te ver nu, quando te levantas)

e baixas as persianas, como quem fecha os olhos e vive. E a tua barriga

(dias perfeitos)

é o lugar onde o sol se recolhe e adormece. Lá fora adensa-se o cheiro da noite

(não há camélias azuis, anuncias-me)

e saem as estrelas dos teus olhos. Nuas, como se entrassem na água com que regas o meu corpo

(as pequenas flores brancas do jasmim a flutuar na banheira).

A parte mais alta do teu rosto ilumina os lençois e há reflexos líquidos nas curvas do meu corpo

(estou deitada. Branca e nua, com a lua que agora estende os braços).

Gosto de te ver nu. Como se fosses água no verão

(semeia-me)

e de tão líquido as tuas mãos dissolvem-me. Revolves a minha pele, como as velhas charruas a espera da terra

(devagar)

e depois choves em mim, torrencial, como num grande deserto expectante e eu

(ainda cheia da nossa sede, já morta)

digo o teu nome

(o verão, ainda),

e depois floresço, como as camélias. E é quando tu me olhas por entre as estrelas que flutuam nos teus olhos

(gosto de te ver assim, tão nu)

que eu me descubro

(azul).

Sunday, July 16, 2006

5º Regresso (ou onde apareço, de repente, sem nada para te dizer)

Às vezes não penso
(em ti),
asseguro-te. É a verdade. Os dias vão escorrendo e eu não penso. Em ti. E depois, de repente, dou-me conta que já não existes
(já não te penso),
para mim. Que se te encontrasse não teria nada para te dizer, nem sequer
(boa tarde)
o que antes parecia urgente dizer-te
(como o amor).
Muitas vezes já não penso
(não existes)
em ti. E surpreende-me como as coisas se transformam e não damos conta onde foi que perdemos
(o que perdemos?)
as chaves que nos abriam um ao outro. Surpreende-me que não te pense, que não me existas. Que, de repente tenha perdido o que antes era tão urgente e necessário
(tu).
Às vezes reapareces-me. Como uma vaga memória de alguma coisa que me aconteceu
(o que me aconteceu?)
e eu não sei dizer já quando. Ou porquê. Ou como foi. Nessas vezes em que me apareces, procuro o que me deste e o que te dei e
(asseguro-te)
não encontro nada. Nada para me dizer de ti. Nada que te quisesse dizer
(e surpreendo-me),
nem sequer saber como te vai a vida. Não tenho nada para dizer -te e isso
(é triste, como um girassol queimado)
assegura-me que nada aconteceu
(afinal),
que não existes. Que nunca exististe
(nem eu),
e que fui eu que te inventei. E agora vais-te desvanecendo como tudo o que se inventa de repente, sem anotar os gestos, as palavras, sem tirar os retratos onde a invenção se parecia com a verdade, às vezes
(casas comigo?)
não penso
(em ti)
Deixaste de existir
(me)
como deixam de existir as coisas que não sabemos para que servem
(para que serviste?),
as coisas que não têm outra utilidade senão serem perdidas
(como as chaves que nos abrem uns aos outros),
esquecidas. Esquecidas mesmo, como se de repente aparecessemos e procurassemos lembrar-nos
(como era quando existias?)
o que é que foi que escrevi? Que ideia tive? Que imaginei?
Se não te penso é porque
(asseguro)
não foste de verdade. Se não te penso é porque nunca houve nada para te dar ou nada que me houvesses dado. Não tenho nada para
(te)
dizer mesmo se te encontrar, porque não estou capaz de reconhecer nenhum dos teus traços ou palavras. E nenhuma pergunta
(como te vai a vida?)
me reencontrará com a invenção de ti. Perdi as chaves que te abriam e me abriam e faziam com que entrassemos um no outro. De repente
(as portas fecham-se com estrondo e nenhuma janela se abre)
penso-te para pensar que já não penso
(em ti)
no que inventei. De repente só eu apareço como se fosse de verdade, sem nada para te dizer, nem sequer
(porque é que também me inventaste se nunca existimos?)
boa tarde.

Thursday, July 13, 2006

5º Assombro (ou onde eu, sendo muitas, me torno refém de mim)

A tarde está quieta. Quieta e quente. Quase vagarosa

(mente)

arrasta-se. Até que os teus olhos me olham

(quentes)

e dou por mim a pensar e se... e se eu te retribuísse exactamente o mesmo olhar

(quente e inquieto),

e se eu passasse a dizer-te olá ou te sorrisse como quem não quer a coisa

(querendo a coisa, não sei bem o quê, ou imagino o quê, mas...)

e se tu em vez de me entrares olhos adentro com os teus olhos me dissesses

(olá)

com as palavras o que o teu olhar me diz ou me sorrisses

(é o mesmo mas diferente)?

Mas depois

(a tarde está quieta)

olho eu, para mim, com olhos vagarosos

(quietos)

e penso quem sou eu? Quantas sou eu? E a resposta entra-me

(inquieta)

pelos olhos dentro. Eu sou muitas. E a inquietação

(para quem olhas quando olhas os meus olhos com o teu olhar inquieto?)

começa a devolver-me angústias. Multiplico-me como num caleidoscópio

(sem as cores)

e afinal eu, sendo muitas, sou tão pequena que

(para onde olhas quando me olhas com o teu olhar quente?)

mal me vejo. E a inquietação de conseguires ver-me

(mesmo assim)

começa a devolver-me ainda outras ansiedades que não me visitavam há tanto tempo que

(a tarde está tão quente)

recuso as possibilidades. Guardo nas mãos bem fechadas

(para que não me fujam, rebeldes)

todos os e se... e finjo que não te vejo, embora passes mesmo ao meu lado, tão perto que consigo perceber que lavaste os teus cabelos compridos demais, esta manhã.

Mas depois

(estou tão quieta)

sendo muitas, não sei quem sou, sabendo que jamais me verias completamente, se me conhecesses e que

(segura e inquietamente)

eu acabaria por te fazer olhar-me friamente

(porque é assim),

até que reconhecesses que sou insuportável

(mesmo que os meus olhos te pareçam bonitos),

que não passo disto. Destas imagens em caleidoscópio

(sem as cores)

que violentamente parto e desmultiplico. Não passo desta porta entreaberta. Ou passo

(lamentavelmente)

para me encontrar com umas quantas, que sou eu. Sem saber o que fazer quando as encontro. Ou passo

(vagarosamente)

para destruir tudo o que os teus olhos me querem dizer. Até

(friamente)

fazer com que me olhes

(quieto)

e finjas que não me vês. E então, amanhã atravesso o corredor e a meio

(como frequentemente)

vagaroso e cheio de olhos, vais aparecer

(inquieto e quente)

e eu vou voltar a fingir que não te vejo. Vou friamente ignorar os teus olhos

(há quanto tempo não me olhavam assim?)

e continuar a caminhar pelo corredor até ao fundo enquanto te afastas vagaroso

(como a tarde)

e eu me aproximo mais de mim. Deste sítio que sou eu e, sendo muitas, não posso ser
(prisioneira)

mais nada.

Thursday, July 06, 2006

5º Destroço (ou onde se olha para dentro, com a cara toda e se fuma a solidão do amor)

Eu digo-te. Ou melhor. Digo o teu nome. E olho depois para dentro, com a cara toda
(à tua procura).
Dizer-te o nome não basta. E então procuro-te inteiro, enquanto acendo um cigarro e vejo
(penso)
a solidão do amor. O fumo do cigarro mal aceso
(mal pensado)
é, talvez, o que não me deixa ver-te todo
(quando te procuro cá dentro para além do teu nome, que digo),
exactamente como te veria se pudesse ainda ver-te inteiro. Penso, de cigarro mal aceso entre os meus dedos tão brancos como é tão ténue
(a tua imagem)
o fumo que sobe das minhas mãos e sai da minha boca. E eu digo-te e estranhamente nada acontece que me leve
(a ti)
a pousar o cigarro, a abrir uma janela no fumo e a ver-te aqui todo inteiro. Como eras antes de ser necessário dizer o teu nome para imaginar-te
(tenuamente).
Uso a cara toda. Espreito para dentro. E
(estranhamente)
não sou capaz de recordar-te todo. Sobram só alguns fragmentos
(a minha cara toda enche-se de fumo e os olhos deixam até de ver o teu nome, dentro)
das tuas mãos. As unhas cortadas rente. Os teus olhos oscilando entre o castanho e o verde escuro
(aquele verde que tomam certas árvores quando o verão resvala para o outono).
Talvez os teus braços. Os sinais nas costas
(mapas de que mundos?).
Olho para dentro com a cara toda e não te vejo, mesmo quando repito o teu nome, com muita vontade que te encontres onde penso
(amor, fumando a solidão)
que já te vou perdendo. E repito. O teu nome. E sobram-me apenas sombras. Inúteis e ténues como são as sombras
(meros indícios de que existe sol)
em qualquer estação. Sobram-me ténues imagens inúteis de fumo
(acendo outro cigarro, para te adensar),
que já vou tendo dificuldade em situar. Digo-te
(ou melhor, digo o teu nome),
enquanto fumo à tua procura com a cara toda, a olhar para dentro
(onde estou eu quando te procuro?)
e a encher a minha memória, o teu nome que repito, a tua imagem que já vou perdendo de uma nuvem branca que disfarça as sombras
(que ténue e inutilmente me sobram).
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