4º Assombro (ou onde foi que deus me fugiu, por eu não o ter procurado provavelmente no único lugar onde esteve sempre)
Queria dizer um tempo. Um lugar. De onde deus me tenha fugido. Mas não sei. De verdade que não sei
(onde perdemos as coisas que carregamos dentro?)
se foi aos doze anos, um dia depois da missa de domingo, farta de tanta gente estranha que se benzia por tudo e por nada e que, depois, maldizia por nada e por tudo. Não sei se foi aos treze. Quando, vá-se lá saber porquê, comecei a misturar corin tellado's com marx e nietzsche e tudo
(basicamente)
o que apanhava que pudesse ser lido. Ou se terá sido aos dezasseis, uma noite em que encontei o meu pai a ler a bíblia e lha arranquei das mãos. E li umas frases
(talvez não tenha percebido bem)
em que deus dizia
(ou se escrevia que deus teria dito)
que não poderíamos jamais comer da árvore do conhecimento
(que parece que era uma macieira)
porque ficaríamos
(ou o adão e a eva, que, ao que também parece, personificavam todos nós, mas não sei)
a saber tanto como deus, sem ser suposto. E eu não gostei. De um deus que
(aparentemente)
nos condenava à ignorância eterna ou assim. E devolvi a bíblia ao meu pai. E continuei a perder deus para toda eternidade
(achando bem que a árvore não fosse um castanheiro, porque gosto tanto de castanheiros, que estava capaz de viver dentro de um)
e deixei de ler corin tellado. E li mais marx e muitas outras coisas que continuamente me negavam a existência de deus e de uma parte importante dessas coisas metafísicas e que parece se entendem bem com a alma
(onde se perde a alma?).
Não sei onde foi que perdi toda a ideia de deus. E a fé. Se continuei sempre a invejar aqueles que são capazes de gestos avassaladores, por ela. Aqueles que acreditam tanto
(e não, como eu, apenas à noite, quando estou sozinha e o silêncio e o medo invadem aquilo que seria a minha alma, se eu fosse capaz de reconhecer que tenho uma)
em alguma ideia que se sentem sempre acompanhados. Não sei, portanto, para onde me escorreram deus e a fé que tinha nele. Não sei como vivi até aqui sem querer saber se deus existe ou não existe. E não sei como
(ou sei, mas acreditem que não é interessante)
de repente comecei a achar graça às igrejas. Vazias. Aos bancos alinhados. Ao cheiro das velas. Aos vitrais. Aos tectos pintados com cenas do céu e do inferno
(sempre gostei dos orgãos de tubos, embora não tanto como gosto de castanheiros)
aos bancos do coro, nos velhos templos, com carantonhas horriveis. Não sei como de repente comecei a pensar se deus existe ou não existe e a considerar que é capaz
(que exista)
mesmo que eu não saiba.
(É verdade. Não se pode saber tudo).
Mesmo que eu tenha passado tantos anos a invejar aqueles que o encontram em toda a parte e são felizes por isso
(ou andam mais acompanhados).
É capaz que exista deus. Não o tenho encontrado nas igrejas, é certo
(mas talvez não procure muito bem. O cheiro das velas, os vitrais, os bancos alinhados, os orgãos de tubos distraem-me muito)
mas nada me diz que ele não esteja lá. Ou noutro sítio qualquer. Mas creio que provavelmente está no único lugar onde o tenho procurado pouco
(excepto, por vezes, à noitinha, no meio do silêncio e do medo)
e, afinal, nunca me tenha fugido
(para onde iria um deus em fuga?)
e esteja exactamente dentro de mim. Ou dos castanheiros
(nunca consegui gostar muito de macieiras)
ou apenas de tudo o que existe. Mesmo que eu não saiba
(mas não posso. Nem quero. Saber tudo).
Queria dizer um tempo. Um lugar. Onde tenha encontrado deus. Mas não sei. De verdade que não sei
(onde encontramos as coisas que carregamos dentro?).
4 Comments:
Um dia disseram-me: deus não se procura, sente-se. Isto quer dizer o quê? Sei lá. Pelo sim pelo não, vê se sentes alguma coisa, pelo menos a fé em ti. Teoricamente (acho eu) começa tudo aí. Aí dentro.
Mais um texto sem reprimendas.
beijos
Sim, talvez seja onde tudo começa. Aqui dentro.
Não gostei muito deste texto. tenho muitas reprimendas. Mas falta-me o tempo.
Beijos
Olha eu sim. Como explicar?
Às vezes apetecia-me estar dentro da tua cabeça e ainda bem que me deixas, percebes?
Muito obrigado.
Beijos
Percebo... acho, não sei.
Beijos J.
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