Friday, June 02, 2006

2º Destroço (ou onde se recolhe e se repete a memória de uma bicicleta vermelha e das gaivotas que com ela voavam)

Passam diante de mim estas gaivotas. E o que tenho para te dizer... é o absurdo de tudo isto. Absurda a água que vejo da janela. O dia cinzento. Esta água cinzenta que me aproxima do mar. Como a ti te aproximava. Embora eu, sem a bicicleta em que voavas. Com as gaivotas. Nestas tardes assim. Paradas. Estreito o convívio com as gaivotas, nestes dias. Sem ti. Nestes longuíssimos dias. Em que me entretenho. A enganar a tua morte. Ou a minha vida. O que é o mesmo. O treino diário a que me obriga a evidência da tua morte faz-me tão diferente do que fui quando ainda estavas vivo e agarravas a bicicleta

(era vermelha a tua bicicleta. Dei a tua bicicleta vermelha. E às vezes vejo o teu pai passar montado nela. Agarrado a ela como se agarraria a ti se soubesse que um dia a tua bicicleta vermelha ficaria para trás, na precipitação da tua morte).

Absurdo este reparar no movimento das asas das gaivotas sobre as águas cinzentas da ria. Num dia assim. Cinzento e murcho. Como as pétalas das flores que raramente me davas. Morrem depressa as flores. Como tu. Guardaste toda a fragilidade das pétalas para o dia em que, absurdamente, deixaste de agarrar a bicicleta

(era vermelha e ainda é).

Partias com tanto vento que, ao ver-te pedalar, não se via em ti a morte, mas a vida. E estas gaivotas rasantes a estas janelas tão grandes onde, às vezes, lá em baixo, vinhas chamar-me. Amor. E eu escancarava a janela e perguntava-te se querias subir tu ou se descia eu. Escolhe tu. Dizias. E a bicicleta

(vermelha)

agarrada à tua mão. E eu escolhia. E às vezes era eu que descia e outras eras tu que subias. Dessas vezes, deixavas a bicicleta

(que sem ti, era sempre vermelha, mas não tinha asas, parecia uma gaivota murcha)

encostada à porta do sítio onde tenho esta janela grande, com a ria ao fundo e as gaivotas rasantes. Deste sítio em que vou perdendo os dias. Todos os dias em que não estive contigo. E não ganhei o teu sorriso. Deste sítio onde estou agora. Tão diferente. Deste sítio de onde não quero sair porque me parece que hás-de aparecer lá em baixo, com a bicicleta vermelha, que agora roubaste ao teu pai, para me chamar.

(Amor).

Não sei o que dizer-te desta diferença que sinto no modo como reparo agora nas coisas todas só para perceber que não existes. Que já não nos sentamos os dois, nas tardes tão grandes de domingo, a ler os livros que me davas e que ficaram para sempre. Os livros que eram as flores que não gostavas de me dar. Porque morriam para sempre. Como tu. Agora. Não sei o que dizer-te a cada vez que abro os livros que eram as flores e de dentro deles salta a tua bicicleta e tu todo. Tu rodeado desta cinza das asas das gaivotas. E eu, aceno-te de fora. Chamo-te.

(Amor).

Tenho tentado reparar nas coisas como se existisses ainda e pedalasses em mim, como o sangue. Na bicicleta vermelha. Mas não sei para onde me escorreu a paciência. E para onde foram aquelas tardes de domingo. Tenho tentado chamar amor, lá em baixo, a ver se me apareço cá de cima.Mas a pessoa que me aparece é sempre tão diferente de mim quando era eu que te aparecia. Nessa altura não reparava como é triste o movimento das asas das gaivotas. Nessa altura as gaivotas vestiam-se de vermelho e eram a tua bicicleta. Ou o meu sangue. Tenho tentado chamar amor a tanta gente, em toda a parte. Aqui neste sítio. Noutro sítio. Mas é sempre a bicicleta que salta do silêncio em que me vejo, depois, mal acabo de pronunciar o amor.

(A bicicleta. Amor).

E passam diante de mim estas gaivotas. E, na verdade, 'o que eu queria dizer-te nesta tarde nada tem em comum com as gaivotas'.

(antes publicado mais ou menos assim, em A Vida Segue Dentro de Momentos, um blog morto. E depois voltado a publicar, assim mais ou menos e com outra banda sonora, em Bebedeiras de Jazz, um blog ainda vivo).

6 Comments:

Blogger va said...

Tento entender porque as coisas acontecem assim. Porque conhecemos e amamos alguém que depois nos desaparece, para sempre. Não percebo. Gostaria de acreditar em alguma coisa que me fizesse crer que tudo tem uma razão de ser, que tudo tem uma finalidade qualquer que no momento não vislumbro. Não acredito. não acredito em nada.

2/6/06 2:15 PM  
Blogger Elisa said...

Vanessa
Tenho para mim que não há nada que perceber. É assim. Nasce-se, vive-se mais ou menos tempo. Morre-se. Porque temos de morrer. Ou porque queremos morrer.
Eu também não acredito em grande coisa. E seguramente que não há uma razão para nada. Ou um sentido. Muito menos para a vida.

2/6/06 6:12 PM  
Blogger José Alexandre Ramos said...

ahhhh, eu acho que há, uma razão para tudo. Tudo mesmo. Podemos falar sobre isso...

16/6/06 5:53 AM  
Blogger Elisa said...

Alexandre
Podemos sim. Estou atrasada. Desculpa. Mas o quotidiano arruinou-me a existência por estes dias.
Falaremos sobre isso, sim, sendo que desde já informo que ainda que concorde nessa razão que há em tudo, muitas vezes ela não nos é dada. A razão (ou outra coisa qualquer) existirá se não a conhecermos? Ora, sei lá.

16/6/06 12:00 PM  
Blogger José Alexandre Ramos said...

bem... o exemplo pode parecer ambíbuo, mas: então o mundo não exisitia já antes de nasceres?

(eu também sei lá)

16/6/06 2:38 PM  
Blogger Elisa said...

Suponho que sim, Alexandre. Suponho apenas. Dado que ele só teve existência real para mim, quando eu tomei dele conhecimento... é a eterna questão filosófica e epistemológica da diferença entre 'a realidade em si' e 'a realidade para nós'. Mas, pronto, eu sei lá!
Bjo

16/6/06 2:45 PM  

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