2º Assombro (ou onde se fala dos mortos como estranhos frutos, de vento, um pouco por causa de 'Strange Fruits' de Billie Holliday...
... um pouco por causa de outra coisa qualquer... já não sei bem o quê)
E o baloiço oscila ao vento. Agora só.
(Poucas crianças há no parque a esta hora).
Sento-me no baloiço e tento lembrar-me de Helena. Maria Helena. Era miudinha. Com os cabelos da cor de um castanheiro no Outono. A cor dos olhos já não a sei. Nem o tom da pele. Nem o da voz. Nem o aspecto que tinha nas manhãs frias de inverno. Mas lembro-me bem de como andava de baloiço Maria Helena. Oscilava com ele e com o vento. Maria Helena era o vento, nas tardes vagarosas em que escapávamos às aulas e procurávamos voar
(como o vento)
oscilando no baloiço. Por vezes eu empurrava. Devagarinho. Para que Maria Helena não caísse. Outras vezes empurrava-me ela. Com toda a força que conseguia ter. E mesmo assim, eu apenas ondulava até ganhar balanço
(pernas esticadas, pernas dobradas. Pernas esticadas, pernas dobradas).
E voava mesmo. Eu. Lembro-me de tudo isto, enquanto estou sentado no baloiço. Sozinho agora. Sem a Maria Helena e os seus cabelos da cor tomada pelas folhas dos castanheiros, no Outono.
(Já o disse).
Acendo um cigarro e a ponta arde. Parece que na mesma cor que tinham os cabelos de Maria Helena.
Estava capaz de a ver chegar parque adentro. Não já pisando a areia, como antes, mas este chão que agora põe nos parques infantis
(onde nem os cães se atrevem a fazer chichi, onde nem perdemos as pequenas coisas que carregamos nos bolsos. Ou as memórias).
Não sei onde deixei de me recordar de Maria Helena. Não sei em que outro parque perdi a sua memória quase toda.
(Maria Helena).
Voltei a lembrar-me de como ela oscilava com o baloiço e com o vento.
(Hoje).
Foi quando me contaram. E aqui estou no baloiço, à espera que os cabelos de Maria Helena atravessem o portão. Não sei porque ainda espero. Que os cabelos dela atravessem o portão.
Lembrei-me de tudo há pouco. Há mais de vinte anos, numa noite qualquer, a minha mãe perguntou-me, recriminadora, que andava eu a fazer, pelas tardes, com a Maria Helena.
Eu respondi-lhe com a verdade, que é sempre mais difícil de sustentar que a mentira:
- andamos de baloiço, mãe.
A mão da minha mão voou mais depressa que o baloiço, naquela noite. Mas não me importei. Pensei na Maria Helena e nos castanheiros e no vento. E lembro-me de não ter chorado.
Hoje a minha mãe perguntou-me, sem recriminações, mas com um tom cinzento na voz:
- Lembras-te da Maria Helena? Aquela miudinha ruiva com quem ensaiavas brisas e vendavais, no baloiço, em vez de estares a resolver equações?
E de repente a Maria Helena, em quem não pensava há tantos anos entrou-me cabeça adentro
(ou mais exactamente os cabelos de Maria Helena e o modo como ela oscilava com o baloiço e com o vento).
Disse:
- Sim, mãe, lembro-me. Que aconteceu?
- Morreu, filho. A Maria Helena morreu.
- Morreu como, mãe?
- Morrendo, filho. Há outra maneira de morrer senão morrendo?
De repente a ideia da Maria Helena a oscilar com o vento no baloiço acertou-me não sei onde. Cá dentro. Não sei onde. Mas senti que o sangue começou a circular mais depressa.
(O medo de saber).
- Mas como, mãe, de quê?
- Morreu matando-se, filho. Um dia triste. Uma vida triste, a dela.
Pensei na Maria Helena que, porque nunca mais a ter visto, tinha permanecido para sempre pequena, num canto da minha memória. Agora morta.
(E tão pequena).
- Mas uma vida triste, porquê, mãe?
- Não sei bem. Parece que há uns tempos se apaixonou por um escritor. Daqueles que não aparecem nas revistas e não vão à televisão. Não sei sobre o que escreve. Nunca li nada dele.
- Que escritor?
- Não me lembro do nome. Só sei que é famoso mesmo não aparecendo. Toda a gente fala nele. Mas acontece que a Maria Helena se apaixonou por ele. Ou pelo que escrevia. Talvez seja o mesmo. Escrevia-lhe cartas. Telefonava para a editora. O escritor nunca lhe respondeu. Nem um autógrafo lhe mandou. Uma fotografia. Nada.
- E ela matou-se por causa de uma pessoa que não conhecia, mãe?
- Um dia, há uns meses, o escritor publicou um novo livro, segundo me contaram. Numa das páginas do livro, a Maria Helena leu uma frase que lhe tinha mandado, numa das cartas não respondidas...
- Que frase, mãe?
- Espera, acho que a anotei em qualquer lado. Era impressionante.
Fiquei sozinho por momentos na cozinha da casa de quando era pequeno. O sangue continuava a circular
(com o ritmo do medo).
- Olha, está aqui a frase.
Peguei no papel, uma conta de supermercado amarrotada. O sangue não parava. Saí da cozinha. Corri até aqui. Ao baloiço. Sentei-me. Acalmei o sangue com os cigarros e as recordações de Maria Helena. Reconheci a frase mesmo antes de a ler. Publiquei-a. Pensei que era minha. Ninguém sabe, nem sequer a minha mãe, que o escritor famoso sou eu.
(Não apareço. Não uso o meu nome).
A frase era dela? A frase que publiquei como minha, era dela? Pensei que era minha. No meio de tanta coisa.
(Olhei o papel amarrotado. Lá estava o que era de Maria Helena e que cuidei meu)
«o baloiço oscila ao vento, como sempre. É com o que sonho todos os dias. O baloiço oscila ao vento. Como os mortos se baloiçam, no Outono. Pendurados nas árvores, contra a paisagem. Contra a vida. Pendurados nas árvores. Como estranhos frutos de vento. Os mortos».
Matou-se a Maria Helena
(matei a Maria Helena)
no Outono. Oscilando ao vento no castanheiro com as folhas da cor dos seus cabelos. Como um baloiço. Como um fruto. Estranho. De vento.
(texto apresentado, com algumas alterações à 2ª edição do concurso O Escritor Famoso, lançado pelo blog Divas & Contrabaixos, segundo o mote do vencedor da 1ª edição, o autor do Bagaço Amarelo. O mote era: e o baloiço oscila ao vento. Foi publicado no mesmo Divas&Contrabaixos e no extinto Pilar da Ponte de Tédio. Parece-me que o texto ficou em 3º lugar, com mais uns quantos, muito melhores).
E o baloiço oscila ao vento. Agora só.
(Poucas crianças há no parque a esta hora).
Sento-me no baloiço e tento lembrar-me de Helena. Maria Helena. Era miudinha. Com os cabelos da cor de um castanheiro no Outono. A cor dos olhos já não a sei. Nem o tom da pele. Nem o da voz. Nem o aspecto que tinha nas manhãs frias de inverno. Mas lembro-me bem de como andava de baloiço Maria Helena. Oscilava com ele e com o vento. Maria Helena era o vento, nas tardes vagarosas em que escapávamos às aulas e procurávamos voar
(como o vento)
oscilando no baloiço. Por vezes eu empurrava. Devagarinho. Para que Maria Helena não caísse. Outras vezes empurrava-me ela. Com toda a força que conseguia ter. E mesmo assim, eu apenas ondulava até ganhar balanço
(pernas esticadas, pernas dobradas. Pernas esticadas, pernas dobradas).
E voava mesmo. Eu. Lembro-me de tudo isto, enquanto estou sentado no baloiço. Sozinho agora. Sem a Maria Helena e os seus cabelos da cor tomada pelas folhas dos castanheiros, no Outono.
(Já o disse).
Acendo um cigarro e a ponta arde. Parece que na mesma cor que tinham os cabelos de Maria Helena.
Estava capaz de a ver chegar parque adentro. Não já pisando a areia, como antes, mas este chão que agora põe nos parques infantis
(onde nem os cães se atrevem a fazer chichi, onde nem perdemos as pequenas coisas que carregamos nos bolsos. Ou as memórias).
Não sei onde deixei de me recordar de Maria Helena. Não sei em que outro parque perdi a sua memória quase toda.
(Maria Helena).
Voltei a lembrar-me de como ela oscilava com o baloiço e com o vento.
(Hoje).
Foi quando me contaram. E aqui estou no baloiço, à espera que os cabelos de Maria Helena atravessem o portão. Não sei porque ainda espero. Que os cabelos dela atravessem o portão.
Lembrei-me de tudo há pouco. Há mais de vinte anos, numa noite qualquer, a minha mãe perguntou-me, recriminadora, que andava eu a fazer, pelas tardes, com a Maria Helena.
Eu respondi-lhe com a verdade, que é sempre mais difícil de sustentar que a mentira:
- andamos de baloiço, mãe.
A mão da minha mão voou mais depressa que o baloiço, naquela noite. Mas não me importei. Pensei na Maria Helena e nos castanheiros e no vento. E lembro-me de não ter chorado.
Hoje a minha mãe perguntou-me, sem recriminações, mas com um tom cinzento na voz:
- Lembras-te da Maria Helena? Aquela miudinha ruiva com quem ensaiavas brisas e vendavais, no baloiço, em vez de estares a resolver equações?
E de repente a Maria Helena, em quem não pensava há tantos anos entrou-me cabeça adentro
(ou mais exactamente os cabelos de Maria Helena e o modo como ela oscilava com o baloiço e com o vento).
Disse:
- Sim, mãe, lembro-me. Que aconteceu?
- Morreu, filho. A Maria Helena morreu.
- Morreu como, mãe?
- Morrendo, filho. Há outra maneira de morrer senão morrendo?
De repente a ideia da Maria Helena a oscilar com o vento no baloiço acertou-me não sei onde. Cá dentro. Não sei onde. Mas senti que o sangue começou a circular mais depressa.
(O medo de saber).
- Mas como, mãe, de quê?
- Morreu matando-se, filho. Um dia triste. Uma vida triste, a dela.
Pensei na Maria Helena que, porque nunca mais a ter visto, tinha permanecido para sempre pequena, num canto da minha memória. Agora morta.
(E tão pequena).
- Mas uma vida triste, porquê, mãe?
- Não sei bem. Parece que há uns tempos se apaixonou por um escritor. Daqueles que não aparecem nas revistas e não vão à televisão. Não sei sobre o que escreve. Nunca li nada dele.
- Que escritor?
- Não me lembro do nome. Só sei que é famoso mesmo não aparecendo. Toda a gente fala nele. Mas acontece que a Maria Helena se apaixonou por ele. Ou pelo que escrevia. Talvez seja o mesmo. Escrevia-lhe cartas. Telefonava para a editora. O escritor nunca lhe respondeu. Nem um autógrafo lhe mandou. Uma fotografia. Nada.
- E ela matou-se por causa de uma pessoa que não conhecia, mãe?
- Um dia, há uns meses, o escritor publicou um novo livro, segundo me contaram. Numa das páginas do livro, a Maria Helena leu uma frase que lhe tinha mandado, numa das cartas não respondidas...
- Que frase, mãe?
- Espera, acho que a anotei em qualquer lado. Era impressionante.
Fiquei sozinho por momentos na cozinha da casa de quando era pequeno. O sangue continuava a circular
(com o ritmo do medo).
- Olha, está aqui a frase.
Peguei no papel, uma conta de supermercado amarrotada. O sangue não parava. Saí da cozinha. Corri até aqui. Ao baloiço. Sentei-me. Acalmei o sangue com os cigarros e as recordações de Maria Helena. Reconheci a frase mesmo antes de a ler. Publiquei-a. Pensei que era minha. Ninguém sabe, nem sequer a minha mãe, que o escritor famoso sou eu.
(Não apareço. Não uso o meu nome).
A frase era dela? A frase que publiquei como minha, era dela? Pensei que era minha. No meio de tanta coisa.
(Olhei o papel amarrotado. Lá estava o que era de Maria Helena e que cuidei meu)
«o baloiço oscila ao vento, como sempre. É com o que sonho todos os dias. O baloiço oscila ao vento. Como os mortos se baloiçam, no Outono. Pendurados nas árvores, contra a paisagem. Contra a vida. Pendurados nas árvores. Como estranhos frutos de vento. Os mortos».
Matou-se a Maria Helena
(matei a Maria Helena)
no Outono. Oscilando ao vento no castanheiro com as folhas da cor dos seus cabelos. Como um baloiço. Como um fruto. Estranho. De vento.
(texto apresentado, com algumas alterações à 2ª edição do concurso O Escritor Famoso, lançado pelo blog Divas & Contrabaixos, segundo o mote do vencedor da 1ª edição, o autor do Bagaço Amarelo. O mote era: e o baloiço oscila ao vento. Foi publicado no mesmo Divas&Contrabaixos e no extinto Pilar da Ponte de Tédio. Parece-me que o texto ficou em 3º lugar, com mais uns quantos, muito melhores).
5 Comments:
Parabéns pelo [merecido] prémio :)
Ora... não foi grande prémio. um 3º lugar... hum... E os outros textos eram bem melhores. :) Mas agradecida... :)
Ora... não foi grande prémio. um 3º lugar... hum... E os outros textos eram bem melhores. :) Mas agradecida... :)
Não estive atento a esse "concurso", mas se o teu texto ficou em 3º entre outros é porque o mereceu. Até gostava agora de saber quem obteve o 2º e o 1º... por curiosidade.
O concurso foi há um monte de tempo e, no entretanto, já houve outras edições. Já não sei quem ficou em 1º e em 2º. Mas segue os links. Bjo
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