Wednesday, September 27, 2006

8º Assombro (ou de como o tempo passa e nós somos apenas dois velhos. Num autocarro)

O tempo passa. E vamos ficando
(estando)
velhos. Há uma canção que diz exactamente isto el tiempo pasa, nos vamos quedando viejos*
(e quedando parece-me uma palavra sempre tão quieta).
Velhos. Vamos ficando
(quietos)
como palavras sossegadas.
Casa.
Pedra.
Granito.
Cadeira.
Amigo.
Rendidas palavras, ao tempo
(que passa)
quieto em que nos enchemos de rugas e sabemos
(diferentes)
mais qualquer coisa que antes. Mesmo que ninguém se interesse
(somos velhos),
sabemos. Qualquer coisa diferente
(a mais).
E sentamo-nos calados. Podemos contar os dedos, como os meninos pequenos. Só para passar o tempo
(que passa)
ou para finalmente sabermos
(quantos são os dedos que temos?)
como vivemos antes de nos sentarmos calados como palavras quietas. Como chegámos aqui
(a falar sem palavras, a contar os dedos como os meninos pequenos)?
O tempo passa
(agora parece mesmo que não)
e vamos ficando. Velhos. E olho para ti e vejo tantos caminhos grandes
(e carreirinhos pequenos)
na tua cara. Ou só no fundo
(aí onde ninguém te encontra)
dos olhos. Agora parece mesmo que o tempo não passa. O tempo às vezes suspende-se. Como a respiração. Como que cansado
(ou talvez apenas velho)
de passar. Agora parece mesmo que os caminhos na tua cara se desfazem até ao tempo em que fomos dois meninos a contar os dedos
(ainda me engano)
e a tecer algumas vidas
(essas)
que acabámos por desmanchar à força da única que soubemos ter
(e agora?).
Estamos quietos, como as palavras que já não dizemos
(já não importa),
e o autocarro avança, engolindo o futuro. Os paraísos que
(antes)
estiveram entre os dedos que contámos e que
(agora)
vamos deixando escorrer como as recordações. O autocarro avança
(passa)
e estamos sentados neste silêncio. Nesta contemplação imensa
(quantos dedos tens? Parece mesmo que te falta um)
de paragens sucessivas
(onde estão todos os paraísos agora?).
O tempo passa. Mas às vezes parece mesmo que não, quando observo os
(meus)
teus gestos carregados de rugas como quem não percebe que sim
(que passa),
que somos apenas dois velhos
(à espera, como estivemos sempre),
sossegados. Sentados num autocarro que
(como os outros)
vai perdendo paisagens. E nunca pára na exacta paragem onde
(nos quedamos)
deixamos de esperar.
* Pablo Milanés El Tiempo Pasa

Friday, September 22, 2006

8º Destroço (E então eu disse. E depois calei-me)

E então eu disse

(depois calei-me).

Disse todas as palavras. Uma a uma. E então eu disse

(até à náusea)

do medo. Da renúnica do desejo. Da minha pequena condição

(portátil)

Disse do que

(não)

sei de mim. E então eu disse. As palavras formando os cruzamentos. As palavras encontrando-me

(ainda)

mais pequena. E as estrelas começaram a cair

(uma a uma)

de um céu sereno. Depois calei-me. Como um triste gato à chuva. E o silêncio que então houve

(esse minúsculo silêncio)

apagou

(uma a uma)

as palavras e expulsou-me de casa

(esse silêncio, que diminui)

como um triste gato surdo. Mas mais pequena

(faltam-me centímetros).

E ninguém me perguntou onde vamos? E ninguém me ofereceu um guarda-chuva

(sobra-me silêncio)

e ninguém olhou para trás e eu

(tão portátil)

empurrei o vento. E as gotas caíram

(uma a uma)

como palavras pingando a solidão. E pela queda

(das estrelas)

o dia fez-se triste. E mais pequeno. E ninguém me perguntou o que fazemos?

(onde vamos?).

E eu calei-me. As palavras apagadas uma a uma

(silêncio)

as estrelas caindo uma a uma

(escuridão)

as gotas pingando uma a uma

(fim).

E eu calei-me, desafiando o infinito

(tão pequeno)

calei-me, esperando a eternidade.

Monday, September 11, 2006

7º Destroço (ou onde se devem encontrar as palavras e tirar as mãos dos bolsos)

Encontra as palavras
(melhor),
encontra o momento em que os dedos soltem as palavras para dizer
(exactamente assim)
como se fosse o instante único em que és
(ainda)
capaz de acreditar. Ou mudar as coisas. O nome que tens para as coisas. E que não é já suficiente.
Encontra as palavras
(anda),
as notas que te faltam nesta música que queres ouvir e
(melhor)
tocar. Encontra-as e di-las como se não pudesses voltar a dizê-las
(com certeza)
outra vez enquanto vivas. Desfaz o raio do nó que tens nos dedos
(na garganta)
e pronuncia as palavras, com as mãos abertas, como se te fosse faltar o ar
(logo a seguir),
como se, por não dizê-las, deixasses de
(ser)
respirar. Encontra
(depressa)
as palavras que devem ser ditas antes que morras de amor
(ou morte).
E di-las como se não te importasse
(mesmo)
mais nada. Como se amanhã fosse o dia último do
(teu)
mundo e tivesses de arrancar de dentro todas as vidas que tiveste e
(não)
viveste. Di-las como se fosse urgente construir terramotos sobre asas de borboletas. Dançar a última dança em cima dos gumes de todas as facas. Di-las como se fosses morrer da morte
(ou só do amor).
Encontra as palavras que há tanto tempo conservas nas mãos, enterradas nos bolsos. Aquelas palavras que sabias
(sabias)
que haveriam de ser ditas antes da escuridão. Di-las como quem cria um momento de claridade e a seguir abre as mãos todas e toca
(toca)
a essência de todas as coisas. O universo todo aqui. Agora.
Encontra essas palavras
(solta os dedos)
e di-las como se não houvesse outro sentido para a
(tua)
vida, senão dizê-las
(agora)
antes que todas as asas se transformem em silêncio. Toda a música se concentre numa única nota. Toda a vida te regresse aos bolsos e os dedos
(destroços)
se cristalizem. E morras, enfim,
(as palavras perdidas)
sem teres vivido.

Monday, September 04, 2006

7º Assombro (ou onde encontro um piano nos bolsos mas tenho as mãos (ainda) presas)

Caiu-me um piano nos bolsos, onde tenho as mãos metidas

(como botões cosidos às casas)

e

(silenciosamente)

sinto-o entre a inquietude e a esperança.

Li uma vez que um homem só é feliz quando constrói o seu próprio piano e inquieto-me mais

(onde porei as mãos?)

com o que agora me desembarcou nos bolsos

(serei feliz?).

Tenho um piano nos bolsos e

(ainda)

conservo neles as mãos. Apertadas para fazer lugar, ou não sei. Mas apertadas como dois

(profundíssimos)

nós que não desatam a música que parece estar prometida. E há palavras que rodeiam de esperanças a inquietude. Ditas na única língua em que todas as palavras deviam ser pronunciadas

(a música).

Caiu-me este piano nos bolsos

(a mim que não sei se sou feliz),

um estranho e tão familiar piano e tão novo que

(ainda)

permanece mudo

(entre a inquietude e a esperança)

aguardando que os nós das minhas mãos se desfaçam e aconteça qualquer coisa, cujo único propósito seja acontecer

(nada acontece).

Receio desatar as mãos. Receio a urgência de uma música imparável e por isso conservo os dedos entrelaçados

(as mãos cheias de nós como as linhas de uma vida feita à pressa)

como dias tristes

(cosidos às casas).

Não posso, pois, tirar as mãos dos bolsos nem desfazer os nós que os dedos entrelaçam. E sento-me

(ao longe a água treme)

como quem descansa, na varanda

(com um piano nos bolsos)

e lentamente aguarda o sono dos pássaros.

Não posso tirar o piano dos bolsos, nem deixar que as promessas de música se cumpram. E por isso

(bem cosida à casa)

sento-me inquieta

(a descansar)

na varanda. Como quem ouve o anúncio da noite

(sossegado)

e aguarda

(de mãos presas, ainda, nos bolsos)

que as estrelas

(ou a música)

recomecem.

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