8º Assombro (ou de como o tempo passa e nós somos apenas dois velhos. Num autocarro)
O tempo passa. E vamos ficando
(estando)
velhos. Há uma canção que diz exactamente isto el tiempo pasa, nos vamos quedando viejos*
(e quedando parece-me uma palavra sempre tão quieta).
Velhos. Vamos ficando
(quietos)
como palavras sossegadas.
Casa.
Pedra.
Granito.
Cadeira.
Amigo.
Rendidas palavras, ao tempo
(que passa)
quieto em que nos enchemos de rugas e sabemos
(diferentes)
mais qualquer coisa que antes. Mesmo que ninguém se interesse
(somos velhos),
sabemos. Qualquer coisa diferente
(a mais).
E sentamo-nos calados. Podemos contar os dedos, como os meninos pequenos. Só para passar o tempo
(que passa)
ou para finalmente sabermos
(quantos são os dedos que temos?)
como vivemos antes de nos sentarmos calados como palavras quietas. Como chegámos aqui
(a falar sem palavras, a contar os dedos como os meninos pequenos)?
O tempo passa
(agora parece mesmo que não)
e vamos ficando. Velhos. E olho para ti e vejo tantos caminhos grandes
(e carreirinhos pequenos)
na tua cara. Ou só no fundo
(aí onde ninguém te encontra)
dos olhos. Agora parece mesmo que o tempo não passa. O tempo às vezes suspende-se. Como a respiração. Como que cansado
(ou talvez apenas velho)
de passar. Agora parece mesmo que os caminhos na tua cara se desfazem até ao tempo em que fomos dois meninos a contar os dedos
(ainda me engano)
e a tecer algumas vidas
(essas)
que acabámos por desmanchar à força da única que soubemos ter
(e agora?).
Estamos quietos, como as palavras que já não dizemos
(já não importa),
e o autocarro avança, engolindo o futuro. Os paraísos que
(antes)
estiveram entre os dedos que contámos e que
(agora)
vamos deixando escorrer como as recordações. O autocarro avança
(passa)
e estamos sentados neste silêncio. Nesta contemplação imensa
(quantos dedos tens? Parece mesmo que te falta um)
de paragens sucessivas
(onde estão todos os paraísos agora?).
O tempo passa. Mas às vezes parece mesmo que não, quando observo os
(meus)
teus gestos carregados de rugas como quem não percebe que sim
(que passa),
que somos apenas dois velhos
(à espera, como estivemos sempre),
sossegados. Sentados num autocarro que
(como os outros)
vai perdendo paisagens. E nunca pára na exacta paragem onde
(nos quedamos)
deixamos de esperar.
* Pablo Milanés El Tiempo Pasa
11 Comments:
(eu prometo que vou ler isto tudo que ainda me falta ler. tenho andado com uma crise de tempo que nem imaginas... muito atarefado mesmo, mas depois do próximo fim de semana, terei mais vagar. não publiques este comentário, quero só que saibas que não me esqueci destas maravilhas. aliás vou até fumar um cigarro e quando voltar pego no primeiro dos textos que ainda não li. beijos, escreve-me, malandra!)
(afinal sempre li tudo)
já te disse que os teus textos me emocionam? Mexem aqui?
"Sentados num autocarro que (como os outros) vai perdendo paisagens. E nunca pára na exacta paragem onde (nos quedamos)deixamos de esperar"
Isto cai tão bem!...
Ups :) Publiquei. :) Eu sei. Mas já fazias falta, rapaz. Como leitor, quero dizer... comoe scritor, fazes sempre, como já sabes.
O esperar... o deixar de esperar. As paisagens que andamos a perder, sucessivamente, porque queremos ou porque não sabemos ganhá-las... Eu gosto de frases com autocarros... e este texto veio assim, depois de alguém me ter escrito um email onde dizia qualquer coisa como... já chega destas conversas (as relativas ao tempo e à sua passagem)... já parecemos dois velhos num autocarro... e ocorreu-me que, na maior parte do tempo é isso que somos... velhos, sentados num autocarro que se esquece de parar.
Eu escrevo, sim.
Beijo
Elisa,
Belo, belo, belo!
XOXOXO
M.
Obrigada, obrigada... (e já chega para não parecer a amália)
beijos
Elisa, vamos ficando velhos,(sim) e mais sábios (talves), mais sofridos (ás vezes), mais sensatos (nem sempre). E Nos cabelos, no branco, ficam os momentos (felizes) e as horas do desencanto (da vida).
Somos (desde sempre) pássaros feridos.
Gostei das tuas palavras.
bjs
gui
coisasdagaveta.blogs.sapo.pt
Claro, Guilherme, desde antes de nascer já estamos a envelhecer. Um processo inexorável esse... e sim, estou de acordo, com os pássaros... feridos, de acordo, às vezes.
Obrigada pela visita.
Vi o teu último post na gaveta... e sim, as cartas de amor deviam ser sempre fechadas com a lingua... e abertas com os dentes. Magnífico...
O pior é que escrevemos poucas cartas dessas... e os emails abrem-se com um click de rato.
Beijinho
"adoro autocarros cheios de palavras" - alguns transportam apenas sonhos rasgados uns, ensonados outros...depende da hora a que passa o autocarro!
Já eu, tisana, adoro frases com autocarros... mesmo que as frases e os autocarros não levem a lugar nenhum.
:)
"Todo se va
todo tiende a pasar
por el tiempo que nos señalan
para ver que al final del viaje
todo vuelve para comenzar..."
Pablo Milanés. "Nostalgias". Do álbum: "Días de Gloria".
"Podemos contar os dedos como os meninos pequenos..."
Isto é belo.
Sandra :-) Ora viva!
E com essa nota de optimismo (quer dizer... penso que de optimismo se trata...) 'al final del viaje todo vuelve para comenzar'!
A frase que dizes bela... foi inspiradíssima na canção Little Girl Blue, que aqui canta a Diana Krall... embora a minha versão preferida seja a da Nina Simone, claro.
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