Sunday, October 22, 2006

9º Regresso (ou o sangue gasto. A solidão. O medo. Ou mergulhar)

Tenho medo
(não sei nadar)
do sangue gasto a viver muito devagar. Tenho medo
(da morte)
de compreender tudo muito bem e depois
(nada)
não ser capaz de continuar a acreditar que o sangue não se perde com
(a vida)
o amor. Tenho medo
(do sangue)
de fixar os olhos num ponto até me esquecer da sua cor. Tenho medo de
(adormecer)
acordar e perceber que a cor dos olhos importa para aquilo que se vê. Tenho medo de me ver ao espelho e descobrir
(a solidão)
que não sou eu quem para mim olha
(quem olha para mim?)
quando é a mim que vejo no fundo do vidro
(embaciado).
Nunca soube quem era e agora é tarde. Quando me vejo
(quem és?)
no espelho surpreendem-me sempre aqueles olhos sem cor. A pele sem companhia. As rugas a crescer à minha volta.
Nunca soube quem era
(agora é tarde),
mas tive sempre o impulso do mergulho, dado pelo espelho. Somos mergulhadores
(solitários)
no sangue dos outros. Ou nas lágrimas. Ou ainda na solidão inquieta
(a nossa)
que nos estende as suas águas de vidro. Diz-me o espelho que mergulhe
(tenho medo)
que aceite o impulso, a ausência da cor, as lágrimas menos vezes
(nada).
Não sei mergulhar. Nem nadar. Nem fixar-me. Neste sangue que devagar me circula. Neste insuficiente sangue. Neste sangue que não chega para me dar cor aos olhos, à pele, à vida ou só a mim. Depressa de mais
(quem dá corda aos relógios?).
Mas doem-me os músculos todos de chorar menos
(aprendem-se as lágrimas menos vezes?).
Sinto o pescoço duro como se fosse de madeira ainda agarrada à árvore de seiva a circular, como o sangue
(devagar),
uma madeira viva. Nunca soube viver
(agora choro menos)
e é tarde. Tenho medo da morte, do amor, de mim diante do vidro líquido que me empurra para o mergulho. Tenho medo de compreender
(alguma vez)
tudo muito bem e depois esquecer-me de que é preciso aprender
(nada)
para sempre
(a solidão, o sangue que não se gasta afinal, o medo)
a mergulhar.

11 Comments:

Blogger isabel mendes ferreira said...

regresso de nenhum regresso....regresso ao fascínio de a ler...arrependidA DO TEMPO que perdi...perdida em viagens que o tempo clareou...

Elisa....
é soberbo este seu Regresso.


abraço.

23/10/06 9:45 AM  
Blogger Luis F. Cristóvão said...

um regresso feito de começo -

um obrigado pelas palavras.

beijo,
l.

23/10/06 11:49 AM  
Blogger Elisa said...

Que palavras, Luís?
Um comentário que deixei no Prazeres Minúsculos? Se foram essas, nada a agradecer, claro. Se são estas que aqui estão e são minhas, idem.
Um beijo para ti também

23/10/06 12:09 PM  
Blogger Elisa said...

Isabel
extraordinariamente simpática, como sempre.
Regressou? Mas chegou a partir alguma vez? É que não me lembro.
Beijo

23/10/06 12:09 PM  
Anonymous Anonymous said...

always lovely, always thought provoking...

24/10/06 6:22 AM  
Blogger Elisa said...

Hi M.
welcome back (I missed you)
thanks for your words.
Beijo

24/10/06 11:29 AM  
Blogger José Alexandre Ramos said...

é: estamos sempre aprendendo a mergulhar. dessa não escapamos, querida.

25/10/06 12:58 PM  
Blogger Elisa said...

Usa-se tão pouco a palavra querida... fora dos contextos 'românticos' quero dizer... e é uma palavra tão bonita. Obrigada Alexandre.

25/10/06 1:06 PM  
Anonymous Anonymous said...

ESCURO


Conseguia ver pardais, nos beirais,
mas já não os vejo!
Procuro-os e nem me lembro
que os afoguei, no Tejo!
Conseguia ver flores a nascerem,
a abelha a poisar,
mas a flor morreu, foi-se a abelha
e não vai voltar!
Que pena tenho de não ser menino
e pôr-me a brincar,
não ter de crescer,
não ter de morrer,
não ter de pensar...

5/2/07 1:38 PM  
Anonymous Anonymous said...

E só mais uma coisita... perdi-me pelas melodias que colocas neste espaço... apenas perdido e encontrado, porque me lembrei de mim própio e chorei... pelas coisas boas que me vão no peito!

Gostei de saber que há colegas sociólogos que têm tanta melodia na alma

5/2/07 1:41 PM  
Blogger Elisa said...

Caro Fernando
Obrigada pela visita e pelas palavras.
Apenas uma nota: a sociologia tem pouco a ver com isto... com estes textos e com as melodias que aqui coloco, evidentemente.

5/2/07 4:04 PM  

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