Monday, October 02, 2006

8º Regresso (ou onde, sem vontade, se interrompe. E apesar disso, se continua)

Havia outras possibilidades sim estou certa que havia outras possibilidades não o fazer sabes se calhar só essa não o fazer e assim mesmo estou certa que o teria feito como o fiz ou como o fizemos quem fez o quê antónio ainda te lembras ainda és capaz de reconstituir momento a momento o que foi que fiz o que foi que fizemos o que foi que me fizeram aposto que não és já capaz não estiveste quando as possibilidades que havia se esgotaram para a única realmente possível mas lembras-te do resto antónio ainda te lembras do resto ou sou apenas eu com o que poderia ter feito com o que fiz com o que fizemos com o que me fizeram que não sou verdadeiramente capaz de esquecer já passaram quase vinte anos e até isto é estranho terem passado vinte anos terem passado vinte anos e eu ainda ser capaz tão capaz de me lembrar de tudo sempre detalhadamente ao segundo primeiro as náuseas de manhã aquelas náuseas que não podia atribuir ao excesso de alcóol da noite anterior bebíamos bastante naquele tempo ou seja há vinte anos bebíamos como se fosse imperioso beber à medida que falávamos e esperávamos eléctricos que já se sabia nunca chegavam a tempo de me levar para casa mas assim mesmo sentavas-te comigo nas paragens dos eléctricos comigo à espera que nenhum viesse a tempo de me levar para casa aquelas náuseas de manhã depois os teus olhos desconcertados defronte dos meus iguais o espanto termos apanhado aquele eléctrico mesmo sem estarmos exactamente na paragem à espera dele eu fiz anos lembras-te disto antónio ía fazer vinte anos e fiz desconcertadamente como pude eu fazer vinte anos se era velha de repente como o mundo se tinha apanhado o eléctrico onde fugi numa direcção indistinta as náuseas se de repente tinha de tomar uma decisão a maior como pude eu fazer vinte anos entre todas aquelas pessoas que não sabiam do desconcerto dos eléctricos das decisões da fuga indistinta chegavam abraçavam-me bebíamos imperiosamente aos meus vinte anos um deles abraçou-me com força cheiras a leite eu fugi à procura do eléctrico mas só encontrei uma pedra e acabei por me sentar e foi ele que me encontrou não tu desconcertada e indistinta sentada na pedra como se a pedra fosse o meu lugar não sei a que horas foi ele desconcertar-se comigo tinha os olhos azuis e ali ficou indistinto e ligeiramente bêbado sem dizer nada pensando o óbvio toma a decisão há outras possibilidades não o fazer mas fá-lo que vais tu fazer que vou eu fazer que vamos fazer o óbvio disseste-me tu queres estragar-nos a vida e nunca mais te sentaste comigo nas paragens dos eléctricos à espera que nenhum viesse a tempo sentaste-te depois à espera que um viesse e me levasse depressa as náuseas e eu disse sim mas pensava grandes relvados verdes e miúdos de cabelos louros a correr e eu disse sim não quero que a nossa vida se estrague mas sabia que a vida se estragava logo ali como pude eu fazer vinte anos antónio como pude tê-lo feito o que fizemos o que me fizeram e assim mesmo continuar como se ainda te sentasses comigo à espera que nenhum eléctrico me levasse e eu fi-lo fizemo-lo ou fizeram-me não quiseste ir lembras-te deste-me dinheiro entrei num sítio qualquer que interessa o sítio alguém me falou num sítio e podia ter sido outro alguém me mandou despir numa casa de banho e eu despi-me até aos ossos havia um prato de comida para os gatos que não vi apenas as espinhas de peixe que se pareciam comigo desconcertada e nua depois disseram-me deite-se aqui e ponha um pé em cada estribo e eu deitei-me abrindo as pernas agora feche os olhos disseram-me relvados cabelos louros passos pequenos e eu fechei os olhos taparam-me o nariz e a boca com uma concha preta e disseram-me respire fundo e respirei fundo com as pernas abertas com o desconcerto indistinta sem conserto uma espinha de peixe os gatos na casa de banho o corpo nu as vozes respire continue a respirar estava adiantada por pouco não dava ouvi-as remexerem-me arranharem-me a carne sem dor respire fundo e fundo respirei e respirei cada vez mais fundo já está levante-se com cuidado vista isto deite-se aqui e deitei-me como um boneco vazio deitei-me numa casa estranha deitei-me vazia já pode vestir-se e ir-se embora e eu vesti-me vazia e antes de me ir embora paguei e antes de me ir embora ainda me mostraram o que me deixou vazia havia outras possibilidades não o fazer mas já foi feito saí liguei-te de uma cabina apanha um táxi anda para casa uma receita na mão uma mão cheia de recomendações o corpo vazio eu indistinta e apanhei o táxi que já não sabia andar de eléctrico e fui para tua casa não me abraçaste não me perguntaste como estava como tinha sido e fizeste-me qualquer coisa para o almoço como se tivesse fome e eu respirei fundo diante do bife respirei fundo antes de começar a chorar num choro baixo estás a chorar para quê nada estou a chorar para nada estou a chorar porque nunca mais vou ser capaz de andar de eléctrico percebes porra não chores para que choras agora achas que havia outra possibilidade não se calhar só essa a que está feita se calhar só não o fazer levantaste-te da mesa deita-te e eu deitei-me fica aí a descansar vê se descansas joana vou à farmácia comprar o que te disseram para tomar não me abraçaste lembras-te antónio nunca mais me abraçaste desde esse dia e saíste e eu fiquei deitada no sofá a olhar para o castelo em frente e a pensar em nada estou a chorar para nada enquanto apalpo a barriga e sinto o sangue correr ainda o sangue estou a chorar porque nunca mais quero esperar que os eléctricos não cheguem estou a chorar porque quero ir para casa estou a chorar porque nunca mais me abraçaste estou a chorar porque nunca tive filhos estou a chorar porque acabei por te odiar um pouco muito pouco mais à frente estou a chorar porque continuei a lembrar-me porque continuei desconcertada e indistinta sem perceber como pude eu fazer vinte anos e não ter sido essa a melhor idade da minha vida estou a chorar porque vinte anos passados ainda me lembro dos eléctricos das náuseas de respirar fundo de respirar e doi-me.

18 Comments:

Blogger José Alexandre Ramos said...

APLAUSOS! As pontuações removidas não deixam tempo para nada, obrigam-nos a respirar sem fôlego a mesma angústia da narradora. As palavras cercam-nos, sitiam-nos, engolem-nos. Não há como fugir delas. É assim também que se prende o leitor. Muito bem!
Bjs

4/10/06 4:09 PM  
Blogger Elisa said...

Obrigada Alexandre.
Beijo

4/10/06 8:04 PM  
Blogger admin said...

Brilhante!

7/10/06 10:25 AM  
Blogger Elipse said...

assombro, Elisa; regresso destroçado e eu afinal feliz por nunca ter de chorar estas dores; mas a senti-las de um fôlego apenas, no meu corpo de mulher e nos meus olhos que inauguraram as tuas palavras com o assombro de quem lê pérolas.
Inclino-me verdadeira para dentro do teu sentir e dou-te um beijo, mulher.

7/10/06 5:57 PM  
Blogger Elisa said...

hum... obrigada, equívoco.

7/10/06 7:20 PM  
Blogger George Cassiel said...

ora aí está!
perfeito!

11/10/06 2:44 AM  
Blogger isabel mendes ferreira said...

repito....já sabe que sou pouco original:



brilhante.

absoluto.

16/10/06 12:01 PM  
Blogger Elisa said...

Obrigada Isabel
beijo

16/10/06 7:48 PM  
Blogger da. said...

...assim nos inclinamos para o sono...

18/10/06 12:52 AM  
Blogger Elipse said...

é brilhante, mesmo!

18/10/06 10:21 AM  
Blogger Elisa said...

da. bom, sempre é melhor que tomar xanax e outros indutores artificiais do sono. Atrevo-me mesmo a dizer que é até um pouco melhor que ver tv.

18/10/06 4:24 PM  
Blogger José Alexandre Ramos said...

hihihihihi... boa resposta.

(então sempre não escreveste ainda mais nada... humpf!)

19/10/06 2:13 PM  
Blogger Elisa said...

(pois não. Bah ;-)))

19/10/06 5:23 PM  
Blogger Elisa said...

Elipse e George
Por uma estranha coisa, só agora apareceram os vossos comentários.
Muito obrigada por eles.

26/10/06 5:59 PM  
Anonymous Anonymous said...

Estonteante. De um fôlego.

9/1/07 1:11 PM  
Blogger blue said...

belíssimo na forma. a situação vivida e os sentimentos expressos são semelhantes aos experimentados por muitas mulheres, sem dúvida por todas as que conheço e que tomaram a decisão de interromper uma gravidez. por isso, obrigada.

10/1/07 5:12 AM  
Anonymous Anonymous said...

Prestou um bom serviço ao SIM. De uma forma absolutamente sublime.

10/1/07 8:32 AM  
Blogger cbs said...

Obrigada Elisa por esse testemunho.
Sou gajo, sou o lado de fora, mas garanto-te também dói, também me lembro, trouxeste-me à memória coisas assim.
a incerteza...saber da gravidez, a angustia, a decisão em cima da hora, querer ir com ela e a parteira não me deixar entrar.
chorar, a descrever o "filho" que viu, chorar, a ida à farmácia e a noite... chorar
uma amiga ficou com ela, sem os pais notarem, e depois contou-me as dores dessa e das noites seguintes.

No país do Salazar era difícil escolher outra saída.
Nas (minhas) condições de hoje eu tentaria opor-me, mas nas de ontem fazia o mesmo... no fim foi sempre ela a decidir usar a coragem que eu não tive que ter.

voto sim, basta o que basta...
um abraço

10/1/07 2:28 PM  

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