Thursday, September 20, 2007

13º Regresso (ou escrever é também calar-se*)

E eu agora calo-me e

(nada)

escrevo. Podia dizer que tenho fome

(e falta)

de arremessar letras contra o silêncio

(pequeno)

dos meus dias.

Podia dizer que tenho a falta

(e a fome)

de juntar o vê e o é e o ene e o tê e o ó

(ao espanta-espíritos)

e semear palavras

(como girassóis).

Podia dizer que escrevo

(agora)

e

(por isso)

me calo.

Podia dizer tudo isto

(escrevo),

também escrevo

(nada disto).


* Marguerite Duras - Écrire

Wednesday, July 11, 2007

12º Destroço (ou explicar borboletas a tartarugas*)

Não me apetece escrever mas grito sem fazer barulho

(para dentro ou lá o que é)

que é para ver se me ouvem ou ouvir se me vêem

(sei lá para quê).

Eu não devia escrever. Mas depois lembro-me

(escrever é também calar-se**)

e acho que concordo

(que eu nunca sei se estou ou não de acordo ou se assim-assim)

que é gritar sem barulho isto de escrever

(mesmo que seja pouco. Mesmo que seja mal).

Eu não devia escrever. Na realidade não há nada sobre o que valha a pena juntar duas letras ou mais

(fazer uma frase),

apenas alguém

(insuficiente)

a quem foi inútil explicar borboletas

(quanto mais fazer-lhe ver a importância dos terramotos que me abalam dentro).

Não é para isso que julgo que escrevo

(falar de gente com carapaça)

mas não sei, honestamente, para que escrevo hoje

(se devia estar a gritar muito calada).

Escrever sobre como

(não se pode)

explicar borboletas a tartarugas, parece-me tão inútil

(medíocre, até)

como usar brincos em orelhas pequeninas. É certo que mais valia

(sem fazer barulho)

gritar para dentro da carapaça que as pessoas põe quando são muito crescidas e responsáveis e rotineiras

(como ratos de gaiola)

e monótonas e lentas e desapaixonadas e desconfio mesmo se chegam a ser

(pessoas)

felizes como as tartarugas que seculares tudo desconhecem sobre a brevidade leve das borboletas

(como se explica isto?).

Não tenho nada sobre o que escrever. Só os terramotos e as borboletas que não sei explicar às tartarugas que por vezes aparecem

(vagarosas como sempre)

para me lembrar que detesto pessoas crescidas. E que devia pousar como quem se cala

(não escrever)

as mãos impacientes.

* Amos Oz in O Mesmo Mar, p.29

** Marguerite Duras - Écrire

Thursday, May 31, 2007

12º Assombro (ou há um gesto por fazer)

Há um gesto por fazer que não encontro quando estás de pé com a cabeça inclinada sobre o meu cabelo. Um gesto que não encontro. Quando te vejo luminoso e muito alto. Como naquelas gravuras representando deuses inexistentes num paraíso inventado

(apressado, como todos).

Por vezes quando não estás, deito-me com os olhos virados para dentro à procura de encontrar o gesto certo para quando

(nunca é hoje)

estiveres de novo com a cabeça inclinada sobre o meu cabelo perguntando-me coisas a que

(não)

respondo com a rapidez de quem espera outras perguntas. De modo a que a tua respiração nunca se afaste muito do meu pescoço. E eu sei

(sei)

que há um único gesto perfeito que não encontro nunca para respirar

(te)

ao ritmo com que respiras. Alto. E muito luminoso. Como um deus imperfeito

(como todos)

que caminha entre um oceano cheio de gente demasiado perfeita. Enjoativamente igual. E ver-te comove-me e eu não sei explicar isto. Antes faço o que não sei.

(Por exemplo)

ficar muito quieta na tua respiração. A comover-me porque existes. A pensar, com os olhos virados para dentro, num sossego aflito, que há

(de certeza)

um gesto por fazer que não encontro. A saber

(sem que tu repares)

que o único mundo que alguma vez será importante

(esse imperfeito paraíso, como todos)

está concentrado nas pequenas ondulações do teu peito

(tu respiras).

Há um gesto por fazer que nunca encontro. Eu

(banal, igual e tão perfeita)

que me pareço com toda a gente. Eu que caminho pelas ruas sem que ninguém repare. E ver-te comove-me como se fosses de água e eu de pedra branca, erodida pelos gestos por fazer que nunca encontro. E ver-te comove-me como se fosses música e eu não sei dizer-te

(quanto)

onde deixo as mãos quando estás de pé, com a cabeça inclinada sobre o meu cabelo. E fico muito quieta na tua respiração, a ouvir o mundo. À espera que as mãos me cheguem

(irresponsáveis)

e façam, sem que repare, esse gesto

(por fazer)

que não encontro.

Sunday, May 13, 2007

12º Regresso (ou errar. Ou o tempo)

Hoje choveu e eu venho

(o rádio com o som muito alto para esta hora da noite em que ninguém (me) ouve)

a acelerar na estrada que

(me lembre)

nunca fizemos juntos. Acelero com o som. Como quem quer mesmo derrapar

(outra vez).

E cheira bem lá fora. Como antes.

(hoje choveu)

e então abro a janela e acelero mais como quem

(se)

quer enganar


(que estrada é esta?)

o tempo. E eu venho a lembrar-me de ti. Do teu nariz

(lugar feliz)

na curva do meu pescoço. Do mar pequeno que havia ao fundo da tua varanda

(cheirava bem)

e do modo com que morríamos um no outro. Hoje choveu e eu carrego no acelerador como quem declara a

(tua)

ausência

de malmequeres


(amarelos)

ou de camélias

(azuis).

E eu venho do deserto dentro, a lembrar-me de ti, à espera que anuncies

(cativa-me)

que afinal não errámos. Que se eu acelerar muito, afinal

(alto, ao ritmo do som)

ainda te apanho certo no tempo

(pontual, como as estrelas)

com a cadeira ligeiramente desviada para que seja fácil sentar-me

(contigo)

outra vez na tua varanda com o mar

(pequeno)

e com a quietude dos que acertaram sempre. E eu venho

(hoje choveu)

a lembrar-me destas coisas que me fazem

(não)

esquecer

(os erros)

o tempo.

Sunday, April 15, 2007

11º Destroço (ou ver-te e saber que te perdi)

Não sei quanto tempo passou
(sempre fizeste contas muito melhor que eu)
mas parece-me que foi muito. Antes que te pudesse ver outra vez ali naquela luz de Lisboa
(um cliché perfeito, como quase todos o são).
Antes que pudesse perceber que te perdi para sempre, da mesma maneira que fui perdendo pessoas e objectos, mesmo procurando guardá-los em caixas, dentro dos livros, em cantos da memória
(nunca me apeteceu perder nada).
Antes que pudesse perceber porque é que a luz de Lisboa, na tua pele, te tornou
(para sempre)
a única pessoa que
(agora)
eu poderia ter amado com a exacta urgência de quando era adolescente.
Não sei quanto tempo passou
(não é uma coisa importante)
antes que te pudesse ver a esta luz. Uma luz feita de água e girassóis. Irrepetível como todos os gestos perfeitos que fizemos
(antes)
e que se foram esvaziando como um balão esquecido, depois das mãos das crianças.
Tantas vezes quis tocar-te
(nesta tarde)
como antes te tocava as sobrancelhas ou o sítio onde o cabelo começa a rarear-te ou os dedos com que
(me tocavas)
pegas em tudo
(a chávena do café, o cigarro, os papéis),
menos nas minhas mãos abandonadas à sua branca solidão.
E não te toco porque não sei quanto tempo passou e como lhe fizeste as contas. Não aproximo a minha boca da tua, a esta luz de Lisboa, porque não sei contar as pequenas rugas que os teus lábios formam e fico à espera que não regresses ao tempo
(muito, parece-me)
que passaste sem que eu te visse. A desejar que não te levantes da cadeira e te afastes direito ao sol do fim do dia
(longe)
ao encontro de uma vida que eu já não vivo, de um amor que já não será o meu.
Não sei quanto tempo passou
(mas parece-me que foi muito)
antes que pudesse ver-te a esta luz e saber
(com uma assustadora exactidão)
porque escorre de mim ainda este amor
(para sempre)
perdido.

Friday, March 02, 2007

11º Regresso (ou amar-te com o mesmo 'amor táctil que votamos aos maços de cigarro'*)

Teço delicadamente a angústia de não poder simplesmente abrir-te os braços como quem apanha o comboio para um país distante e nada tem como bagagem
(tu és esse país).
Não sabes como é isto. Este tecido que vai crescendo lento como uma manta que se deita sobre alguém que adormeceu
(queria fugir)
abruptamente. Não sabes como é isto. Querer tocar-te as sobrancelhas como quem se lembra de tocar piano com as mãos vagarosas e um pouco tristes
(abro o maço dos cigarros)
das mulheres que fazem renda de bilros, trocando as peças minuciosamente no mesmo ritmo de sempre. Não sabes como é olhar-te nessa elegância de pássaro e mandar para trás o dedo que se estende em direcção ao teu sorriso
(ponho um cigarro na boca como quem te morde as asas).
Teço delicadamente e de cor os contornos da tua cara toda. Sei de cor, sem nunca os ter tocado com a ponta da língua, os teus dentes que queria abrir como quem apanha o autocarro em direcção à noite e vai
(sem nada)
para se deixar estar. E tu não sabes como é isto. Querer simplesmente abrir-te a boca com o vagar de quem passeia entre castanheiros antigos e é um deles
(exactamente um deles)
à espera do fruto. Ponho um cigarro na boca. E o fumo sobe a traçar rotas para longe, que não sigo. Seguro a angústia entre os dedos
(médio e indicador)
com a mesma força de quem esmaga a beleza insuportável das tuas pestanas. E eu gosto da tua cara apenas feita para contrariar a inutilidade dos meus dias. Tu não sabes como é isto. Querer tocar-te onde o teu cabelo nasce como quem põe as mãos debaixo de torrentes de água fria
(e não estremece).
Eu gosto das tuas pernas magras que não andam como as demais. Dos teus braços estreitos como asas desengonçadas. Das tuas mãos que nunca pousaste sobre mim. Da tua barriga lisa e constante onde
(se)
podia afogar toda a angústia que é amar-te sem o tacto. O mesmo sentido que uso para abrir maços de cigarros e tomá-los entre os dedos, um atrás do outro, com a mesma urgência com que te tomaria o sexo
(esse país).
Eu gosto dos teus ombros que inclinas suavemente como um olhar que se perde no chão e não consegue encontrar o caminho de regresso. E tu não sabes como é isto. Querer endireitar-te os ombros. Dar-te um mapa que os teus olhos pudessem seguir sempre e nunca em frente
(a transparência).
Teço delicadamente a angústia de te amar sem
(sentido)
o amor táctil que votamos às coisas importantes
(os livros, os maços de cigarros)
e sob a a manta abrupta
(impalpável)
adormeço.

* Caetano Veloso

Friday, February 09, 2007

11º Assombro (ou onde estou há longos minutos...)

(de onde chegam as palavras, quando chegam?)
com os nós dos dedos brancos de tanto apertar as mãos à procura de outras, não sei se as tuas, que me desfaçam as solidões, as saudades, os lugares todos onde estive já e
(onde chegamos, depois de todos os lugares onde estivemos?)
nada acontece. Para além da janela as luzes continuam a existir, alheias à solidão dos meus dedos, à súbita amnésia da minha boca
(não quero dizer nada e, no entanto, estou sentada há longos minutos à espera das palavras)
que já raramente se abre, esquecida dos beijos, das pálpebras, do tecido dos corpos quando amam. Para além da janela os autocarros continuam
(a passar)
a lembrar-me as viagens que se fazem para sítios tão longínquos
(todos os lugares onde estive)
como outras mãos que se apertam tecendo pequenas penínsulas de ternura que nos salvam
(abro a janela)
das primeiras horas impossíveis da manhã. As mesmas em que me sento na cadeira, longos minutos, à espera que qualquer palavra chegue e me faça
(saltar)
querer voltar a aconchegar-me ao sono tranquilo dos que não procuram com os nós dos dedos brancos, um continente onde ancorar o medo
(chegar)
de não ser capaz de encontrar o caminho de regresso de todos os lugares onde já teci as palavras, os beijos, a pele. Chego-me à janela e vejo os autocarros vazios
(é uma hora impossível)
que passam no sossego de quem esquece as viagens que se fazem dentro
(longe é onde?)
até ao fundo da noite, com as janelas abertas ao salto
(voar é como?)
que não acontece nunca, porque as palavras
(como facas afiadas, rasgando nuvens)
encontram-me sempre, segurando-me ao parapeito como outras mãos
(não sei se as tuas)
a desfazer-me os dedos solitários.
* o mote foi dado pelo belo texto do Alexandre - A mesma viagem
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