Wednesday, May 31, 2006

1º Assombro (ou onde se fala de um homem que entrou com uma vela para dentro de um quarto e de como ficou a olhar para a chama ainda muito tempo...

... depois de a mulher se ter erguido e saído)

Aquele homem e aquela mulher ainda não se tinham diluído um no outro. Ainda não, embora amando-se, se haviam amado. Podia saber-se isto olhando os dois. Mas ambos desconheciam que a sua fome do outro era tão grande que se podia saber que ainda não se haviam amado, embora amando-se.
Tinham os olhos enormes da fome que sentiam. E traziam a boca aberta na expectativa do assombro da boca do outro.

(Estavam cheios de fome e expectantes como certos terrenos).

Os seus corpos eram territórios abandonados. Mas onde se sabia que a construção haveria de invadir as ervas. Os seus braços estavam caídos. Mas exprimiam-se como se estivessem estendidos. Prontos a entrar na água. Aquele homem e aquela mulher ainda não se tinham diluído um no outro. Podia saber-se isto. E isto se soube. Apenas olhando os dois. Tinham os olhos brilhantes da febre que traziam. As olheiras esculpidas com a lenta urgência do desejo. Eram territórios desertos à espera de gente. Eram escolas vazias à espera das crianças. Eram campos invadidos pelo mato à espera das foices. Eram pedras à espera de ser atiradas.

Aquela mulher esfomeada daquele homem carregava pedaços de culpa. Como destroços à deriva no mar alto. Esses pedaços impediam que frutos e flores renascessem das ervas, que crianças invadissem os bancos de madeira, que foices enfim ceifassem o mato que crescia desordenada mas urgentemente à sombra de uma culpa antiga.

Aquele homem que morria de fome daquela mulher trazia apenas consigo uma vela. Uma vela branca. Enorme. Nunca antes acesa. O homem que de fome morria esperava que os pedaços de culpa se diluíssem na expectativa do fogo. Que era água. O homem esperava. A mulher desconhecia que o homem transportava consigo, a cada encontro, aquela enorme vela branca, nunca acesa.

Podia saber-se isto. E foi isto que se soube. Olhando os dois. E isto sabia-se em toda a parte onde aquele homem e aquela mulher se encontravam. Nos cafés onde ninguém ia. Nos restaurantes afastados da cidade. À noite na praia onde as estrelas eram a única companhia do mar. Nas sessões da tarde dos cinemas que ninguém frequentava. Nos parques esquecidos pela luz.

Onde aquele homem e aquela mulher se encontravam sabia-se que a fome dominava o mundo. A fome do corpo. A fome dos ossos. A fome da carne. A fome da cabeça. A fome maior que tudo o que alguma vez pensou saber-se como fome.

Um dia veio em que nada mais se soube. Daquela fome. Veio o dia em que o homem entrou com uma vela apagada para dentro de um quarto. Foi o dia em que a mulher diluiu os pedaços de culpa na chama advinhada porque nunca antes acesa. Para dentro de um quarto entraram o homem, a mulher e uma enorme vela branca. Apagada. A mulher espantou-se quando o homem a acendeu. Não sabia. Não podia saber isto. A mulher sacudiu o cabelo e encarou a chama. E o homem. E era só fome o que se sentiu. Não se soube como entraram um no outro. Nem como comeram da carne, dos ossos, do corpo, da cabeça. Um do outro. Pode apenas saber-se que quando o homem entrou na mulher ambos encontraram o lugar onde pertenciam. Desde sempre. Pode apenas saber-se que um segundo antes do universo se ter reunido

(inteiro)

nos sexos daquele homem e daquela mulher, o homem murmurou e se falassemos durante os próximos cem anos? E que a mulher não respondeu, porque a resposta veio a dar-se depois, no momento

(inteiro)

em que ele entrou nela e ambos souberam que a fome que sentiam se havia multiplicado. Não pudemos saber isto. E não foi isto que se soube. Soube-se só que o mundo se deixou ficar. Supenso na fome para sempre insatisfeita daquele homem e daquela mulher. Soube-se que muitas horas depois de a mulher se ter erguido e saído, o homem continuou a olhar para a vela, agora acesa e gasta, como quem aprende que o desejo é lento a saciar-se. E que a fome não se mata quando começamos a colocar tijolos em terrenos, outrora abandonados e expectantes das casas. Que a fome permanece muito depois dos bancos nas escolas se encherem de crianças. Que a fome continua a repetir-se infinitamente, muito depois de as foices terem destruído as ervas que, por vezes, invadem os campos.

2 Comments:

Blogger va said...

A fome permanece sempre, para lá do desejo, para lá do tempo e espaços clandestinos onde se amaram, a fome permanece na solidão que é hoje a dela...
Gostei muito do texto. bjo

31/5/06 3:06 PM  
Blogger Elisa said...

... ou na solidão que será hoje a dele.
Obrigada, Vanessa.

31/5/06 4:12 PM  

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