Thursday, November 02, 2006

9º Destroço (ou não te disse adeus. E tenho frio)

Não te disse
(adeus)
que tinha frio. E depois encontrei-te deitado no chão

(arrefecido),

inclinado na assombrosa posição de quem entra no sono e deixa a vida parada num sítio qualquer

(onde foi?).

Não te disse adeus

(não me deixaste)

e não sei como posso continuar a fingir para toda a eternidade

(um lugar tão grande)

que não é o frio que me invade os ossos para sempre. Foste para onde? Não levaste os óculos, nem o casaco. Não levaste os documentos. Não levaste o beijo. Não me disseste

(também)

adeus. Para onde foste? Não deves ter ido longe

(onde fica a eternidade?),

porque nada levaste do que te fazia falta, quando saías. E deixaste-me aqui cheia de frio a olhar para o chão. O mesmo chão onde te encontrei arrefecido

(sem regresso)

com aquele ar tranquilo dos que encontraram o que procuraram sempre

(como viste, sem os óculos?).

O ar tranquilo que põe as pessoas quando sonham

(com que sonhas agora?)

e quando não têm frio

(alguém levou os teus casacos).

Não te disse adeus. E custa-me este frio sob os pés que me acompanha onde quer que os ponha. Custa-me o medo que chega de madrugada

(e agora quem me sonha?)

e fica ali a adiar-me o sono. A adiar-me a vida. Custa-me o desassossegado sono que de manhã se anuncia

(eu nunca sonho)

alimentando a incompreensão do mundo. Às vezes abro as gavetas. Os óculos olham-me do fundo e parecem querer dizer qualquer coisa. Mas nada é dito e eu continuo a olhar as lentes à espera de compreender. Pego com cuidado na tua carteira

(intacta)

e vejo a minha fotografia sorridente

(ria-me de quê?).

Aquela pele muito branca. Os olhos muito claros. O cabelo muito curto. A camisa muito cor-de-rosa, como se esperasse ser para sempre a

(tua)

menina a quem chamavas meu amor. E a seguir olho para as tuas fotografias, nos cartões. E percebo que já não és

(meu)

aquele homem tranquilo que me sonhava. Que há qualquer coisa que devia ter sido compreendida antes de tudo ter começado do voo que fizeste, rente ao chão

(o que era, porra?).

Abro depois os cadernos. A letra torta com que me dedicavas palavras. Aquela letra agora morta que já não serve para nada

(como queres que compreenda?)

como tu.

Não te disse

(tenho tanto frio)

adeus. E não sou capaz de perceber porque é que não fui eu

(a menina branca de camisa cor-de-rosa)

a transformar-se no pássaro da eternidade. E porque é que não és tu

(o tranquilo homem que me sonhava)

quem observa agora o chão, as fotografias, os óculos, a letra morta, e

(para sempre)

não compreende nada. Porque é que não és tu

(no mesmo chão)

aquele que

(cheio de frio)

não me disse adeus.

14 Comments:

Anonymous Anonymous said...

:(:(:(:(:(:(:(:(:(:(:(:(:(:(.......

I send you a a great big hug!

M.

2/11/06 6:46 PM  
Blogger Elisa said...

Obrigada. Mas não fiques assim tão tristes. É preciso aprender a viver com estes 'adeus' que nunca foram ditos.

2/11/06 6:49 PM  
Anonymous Anonymous said...

quando éramos meninos sabíamos dizer coisas simples
e lambuzávamo-nos
sem que ninguém nos desse doces
ou precisássemos de dizer adeus

3/11/06 10:06 AM  
Blogger Elisa said...

Quando éramos meninos talvez ninguém estivesse morto.

3/11/06 10:09 AM  
Anonymous Anonymous said...

só talvez. de qualquer modo,
soube saborear.

3/11/06 10:15 AM  
Blogger Elisa said...

sim, só talvez. Quem saboreou o quê? Os doces?

3/11/06 10:17 AM  
Anonymous Anonymous said...

(não sei se o anterior seguiu)
mas quem saboreu foi o alberto. o que saboreou: as suas palavras.
gostei de ler.

4/11/06 5:31 AM  
Blogger Unknown said...

António Velho,
Ou de como os achismos e os quaisquer coisismos às vezes são profundamente despropositados...

4/11/06 9:58 AM  
Blogger Elisa said...

Obrigada Alberto.

4/11/06 10:59 AM  
Blogger Elisa said...

Hum... Blah... o Alberto não disse assim nada de mal.
Beijos

4/11/06 10:59 AM  
Blogger José Alexandre Ramos said...

dás-me um autógrafo?

ainda estou de boca aberta. mais uma vez irrepreensível, minha querida, irrepreensível... triste ou não, ou seja como e porque for - penso que não é para aqui chamado - as tuas mãos estão grávidas de poesia, meu pássaro da eternidade. Toma estes beijos infinitos por também me ensinares isto que é tão belo.

5/11/06 1:17 PM  
Blogger Elisa said...

Dou-te um beijo. Obrigada, Alexandre. Muito obrigada.

5/11/06 6:00 PM  
Blogger Luís said...

Elisa
A morte é como a vida, uma coisa sem explicação.

10/11/06 5:27 AM  
Blogger Elisa said...

Luís
eu sei. Deixei de procurar explicações para esta morte. Aliás, foste tu que escreveste há semanas que 'a morte é uma coisa que diz respeito a cada um' e eu disse 'claro'. Claro como 'é isso' e claro como em claridade. A vida não tem também explicação, embora tentemos sempre justificar aquilo que andamos a fazer enquanto vivos.
Que se passa n'A Natureza do Mal? Onde andam as tuas palavras. Sinto a sua falta.

10/11/06 9:14 AM  

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