Monday, May 29, 2006

1º Destroço (ou onde se repete a história de uma morte que também foi minha)

Há retratos teus onde continuas vivo. Ninguém morre nas fotografias. Em algumas delas tens o ar feliz dos vivos que apanham sol. Estás vestido de branco e encontro-te umas certas semelhanças com Hemingway. Na pose. E nos cabelos brancos que não tinhas. E que jamais terás. Agora. Tenho caixas cheias de ti vivo. Ninguém está morto nos retratos. Em alguns estou a teu lado. Tens o braço por cima dos meus ombros e toda a gente dizia que me amavas. Noutros retratos estou só eu. Mas estás atrás da máquina. Não sei porquê. Mas é demasiado nítido que me amavas nesses retratos. Onde estou só.

(Ficamos bonitos nas fotografias quando são tiradas por quem nos ama.
Ficamos sempre bonitos nessas fotografias.
Porque não somos bonitos mas somos objecto do amor).

Tenho caixas cheias de ti. Não espreito para dentro delas há tantos meses! Tenho medo que me morras completamente se voltar a olhar para ti. Que os teus olhos já não digam que me amavas. Que os teus cabelos tenham ficado brancos de repente. Que me apareças velho. Ou que me desapareças.

Há livros teus onde continuas vivo. Ninguém morre nos livros. Nas anotações nas margens. Nas dedicatórias. Na assinatura. Às vezes acontece encontrar-te vivo dentro dos livros. Abro mais os livros que as caixas dos retratos. E não sei como me ponho. Quando vejo a tua letra que me diz (ainda) estou aqui. Não sei como não morro logo, quando fecho o livro. Mas talvez morra sempre um bocadinho quando volto a colocar o livro na estante e a tua vida ali fica, arrumada, a encher-se de pó.

(Hei-de reparar qual a arrumação dos teus livros. Quando tiver tempo para desempoeirar as estantes. Mas acho que não estás arrumado com uma ordem clara. Uma ordem que diga: aqui vive um homem bom. Que se ausentou para outro lugar).

Lembro-me agora que talvez as fotografias não tenham essa ordem clara. Que a sua desarrumação dentro das caixas não diga como viveste e por onde o fizeste. Desculpa. Hei-de tratar disso um dia destes, quando me sobrar o tempo e me diminuir a existência.

(Acredita que me vou diminuido quotidianamente. Encolho como as flores que secam lentamente. Um dia destes terei tempo. Estarei completamente morta da tua morte e terei tempo).

Há memórias minhas onde continuas vivo. E a cabeça é o pior lugar para se estar vivo, quando se morre. É sobretudo pela cabeça que me continuas vivo. Penso. Não adianta pensar. Mas penso. E encontro-te nos cantos mais improvavéis do meu cérebro.

(Olha, não és tu que estás ali, daquela vez em que te li O Inventário de Ana à sombra de um castanheiro? Não és tu que me conduzes por uma estrada demasiado estreita e vertiginosa no sul de França comigo aos gritos a dizer pára, pára, queres matar-nos ou quê?? Não és tu que estás ali quando apago a luz, de madrugada e sinto claramente o teu corpo contra o meu, na posição de cadeira e uma voz, a tua, que me diz baixinho, amo-te, dorme bem? Olha, vê lá se não és tu quem me lava a cabeça com água fria, num fontanário público, num dia tão quente como não conheci outro assim? E não és ainda tu quem sempre caminhava a meu lado, com a tua mão a proteger-me de todo o mundo lá fora?)

Tens demasiada vida, para quem morreu. Tanta que duvido que estejas morto. Ou então que eu esteja viva. E há tantos retratos, tantos livros, tantas memórias onde continuas vivo, aos trinta e três anos. Vivo. Intacto. Inviolável. Eu queria ter trinta e seis anos e estar viva assim, desse mesmo modo, luminoso e bom. Desse modo indestrutível. Estás em toda a parte. Mesmo nos lugares onde não quero que estejas já.

(A culpa é minha. Claro. Quem me manda transportar-te ainda como se vivesses? Quem me diz não vais atender o telefone quando pego nele distraída porque tenho, tenho mesmo, uma coisa para te contar? Quem me diz que não ponha dois talheres na mesa, dois copos e dois pratos quando eu sei, sei mesmo, que vais chegar para jantar?)

Esqueceram-se de me avisar que morreste. Ou serei apenas eu que me esqueci de perceber que nos retratos, nos livros, nas memórias, não és tu já que vives, mas aquele que eras entre os vinte e um e os trinta e três anos. Aquele que tu eras. Esqueci-me de perceber que já não és. E multiplico-te em todos os meus gestos. E tento perceber que morri, eu. Para ficar contigo.

(Viva. Intacta. Inviolável. Luminosa. Boa. Indestrutível)

para te gritar: pára, pára. Tu queres matar-nos ou quê?

18 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Não precisas de fazer seja o que for para não te esqueceres. O amor, não foi, não é, uma palavra vã para ti.Para vocês, digo sem complexos, e acho que me permites..
A tua competência, os teus olhos, as tuas mãos, muita coisa se pode admirar em ti. Mas prefiro reter-me sempre na tua capacidade de amar.

30/5/06 4:22 AM  
Blogger Elisa said...

Essa das mãos denunciou-te logo. (Os meus olhos são um lugar muito comum). Permito, certamente. Quase tudo te permito. Como soubeste. E como sabes, ainda.

30/5/06 12:28 PM  
Blogger Unknown said...

Bonito texto, Elisa. Mas tão triste...

Parabéns pelo novo blogue :)

30/5/06 6:12 PM  
Blogger Elisa said...

Obrigada BlahBlah.
Ora e a tristeza que tem, mulher? Não fará parte de tudo, também, tal como a alegria?
Porque mostramos a alegria e não nos fica nada bem mostrar tristezas? hum?

30/5/06 6:18 PM  
Blogger Unknown said...

Boa pergunta, Elisa.
Porque a tristeza nos fragiliza aos olhos dos outros?? Talvez.

31/5/06 7:03 AM  
Blogger Elisa said...

E a fragilidade não é a nossa condição de pessoas? Talvez seja. Passamos demasiado tempo (eu incluída, apesar de toda esta exposição) a fingir que somos fortes. E não sei bem porquê. Quando aquilo que nos define é sobretudo o sermos frágeis.
Bj

31/5/06 10:30 AM  
Blogger va said...

O sentimento ao ler este texto foi "porra, pá...". Não é uma expressão muito elaborada, mas acho que percebes o que quis dizer ou sentir.
bjo

31/5/06 10:45 AM  
Blogger João Oliveira Santos said...

E findo este texto, apetecia-me que já tivessemos combinado aquele jantar. Que ele fosse hoje mesmo, agora, neste preciso instante, na última linha deste texto.

Jantaríamos e haveriamos de rir muito, mas antes era um abraço, um abraço muito forte e frágil que te fico a dever.

Beijos

31/5/06 10:48 AM  
Blogger Elisa said...

Vanessa, sim, acho que percebo mais ou menos.

31/5/06 10:57 AM  
Blogger Elisa said...

J.
Oh homem! Não te comovas tanto!
É que eu janto todos os dias (mas raramente almoço) e rio-me como uma perdida, com alguma frequência. Outras vezes rio-me mais contidamente. E outras (poucas, apesar de não parecer) choro. E outras não faço nada. Deixo-me estar. Havemos de combinar o jantar sim senhor. E o riso. E sobretudo não penses que me vou esquecer de te dar um grande abraço. É que sou uma pessoa de abraços. E a ti, por várias razões, nenhuma delas sendo esta que aqui colocas, sempre me apeteceu dar-te um grande e forte abraço! Mas não te assustes. Nem com o texto, nem com a expectativa do abraço. Está tudo azul, if you know what I mean. ;-)
Beijo

31/5/06 11:02 AM  
Blogger Unknown said...

JOS: De Lisboa a Aveiro vai a mesma distância horária que de Lisboa a Cascais em hora de ponta... Tantas palavras, basta ir :)

Elisa, também gostei muito desta versão sumarizada de ti aqui, na mais discreta caixa de comentários, mas que faz um excelente contraponto ao outro texto :)

31/5/06 11:33 AM  
Blogger Elisa said...

Risos Blah. Isso da distância é verdade. De Lisboa a Aveiro são 2h. Mais ou menos as mesmas que se leva a atravessar Lisboa em hora de ponta. Mas minha cara Blah o difuso convite (que me lembre) incluía-nos aos 3. ;-)Basta vir ou ir, portanto.

31/5/06 11:40 AM  
Blogger Unknown said...

Pois é verdade Elisa. E na semana passada como fui 4 dias ao Porto estive quase a ligar-te para almoçarmos no fim de semana. Mas, olha, o tempo voou e acabei por não ter tempo para fazer nem metade do que queria. Next time.

31/5/06 3:27 PM  
Blogger Elisa said...

Ora vês?
Next time. Sim. E, entretanto, por aqui.

31/5/06 4:07 PM  
Blogger Rosmaninho said...

Queria conseguir dizer alguma coisa, mas não consigo, aqui. Acho que nem noutro lado qualquer. É demasiado intenso e tenho que o digerir primeiro. Parabéns, Elisa, mais uma vez.
R

31/5/06 6:21 PM  
Blogger Elisa said...

Obrigada, Rosmaninho.
Beijo

1/6/06 8:08 AM  
Blogger JPN said...

Passei por aqui, Elisa. Ainda só vou no primeiro post. Sabe-me bem a tristeza. Há nela uma alegria garimpeira. Tenho agora mais um lugar aonde ir. E vir. Eu não sei, mas acho que não vejo hoje ninguém aqui na blogosfera a escrever sobre o amor como tu. A paciência com que te depuras. O amor nas tuas mãos parece um bonzai. Essa vida da qual nos despedimos, que retomamos, pode afinal ser a condição da nossa festa. Abraço

15/6/06 2:50 PM  
Blogger Elisa said...

Ora JPN. Nada disso, há imensa gente na blogosfera a escrever sobre o amor. Talvez não de um modo tão triste.
Bjo
e lê o resto, se te apetecer

15/6/06 3:13 PM  

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